Descubra a importância de compreender o pensamento de Zygmunt Bauman na contemporaneidade, a partir do seu mundo líquido, com o doutor Pedro Henrique Máximo.
O sociólogo Zygmunt Bauman, falecido em 2017, é aclamado globalmente por sua obra Modernidade Líquida. Esta obra faz parte de um legado de mais de 80 livros, além de compor uma trilogia escrita no final da década de 1990. No entanto, Modernidade Líquida não é o maior monumento de Zygmunt Bauman.
Por falar em Modernidade Líquida
Não há dúvida que Modernidade Líquida é leitura indispensável. É obrigatória para aqueles que querem compreender nosso tempo e condição atual. Nela Bauman traduziu e nos deu um conjunto de explicações dos porquês de nossa constante sensação de insegurança, medo e instabilidade. Além do mais, é acessível, de leitura relativamente simples e ao mesmo tempo densa.
Nesta obra, a originalidade de Bauman está na potência do termo líquido. Uma metáfora que traduz de modo preciso a condição de mudança permanente de nossos cenários de vida. Fluidez e leveza são suas características. Além do mais, o conteúdo que ele traduziu a partir desta metáfora é de igual valor.
A ideia central do livro é que tudo é derretido ao mesmo tempo, em intensidades e velocidades diferentes. Em outras palavras, este “tudo” se refere à vida humana que passa por mudanças importantes em curto tempo. O tempo todo!
Este é um ponto que merece destaque! Em Modernidade Líquida Bauman analisou as causas. Deu ênfase a elas. Identificou processos de derretimento e pontos de maior fluidez. Bauman, por outro lado, não era ingênuo. Não generalizou. Sabia bem que ainda há sólidos resistentes. Por isso destacou que a modernidade “foi um processo de liquefação desde o começo”. No entanto, nenhum sólido está livre da alta pressão ou aumento de temperatura.
Modernidade e Holocausto à sombra de Modernidade Líquida
Apesar de sua relevância, Modernidade Líquida não é o maior monumento de Zygmunt Bauman. Seu livro de 1989, Modernidade e Holocausto é, dentre todos os por ele publicados e aqueles de que temos acesso, o que nos faz olhar no espelho de frente. Ainda que a grande maioria de suas obras nos tenha provocado esse auto encontro, esta obra merece atenção.
Por que? Quais as razões dessa alegação?
Modernidade e Holocausto fechou um longo período de 44 anos de silêncio de Bauman sobre o holocausto. Assim, o maior genocídio já cometido em nossa história moderna foi analisado e interpretado.
Bauman não o vivenciou como a maioria dos judeus europeus. Quando as tropas de Hitler invadiram a Polônia em 1939, a família de Bauman fugiu para a União Soviética. Depois, quando adulto, lutou contra as tropas nazistas juntamente com o Exército Vermelho até a, enfim, tomada de Berlim. Escrevi com mais detalhes sobre este assunto em Zygmunt Bauman: a vida de um jovem polonês nos anos de Guerra.
No entanto, em julho de 1944, Bauman se deparou com uma cena terrível em Lublin, quando lá chegaram as tropas dos Exércitos soviético e polonês. Lá encontraram o Campo de Concentração de Majdanek, recém liberto (22 de julho). “Os cadáveres jaziam por ali aos montes, sua reciclagem iniciada, mas ainda inacabada” escreveu Bauman a seu amigo Keith Tester.
Esta é uma informação preciosa publicada por Izabela Wagner em Bauman: uma biografia(2020). Conforme a autora, a partir desta evidência, Bauman conheceu de perto o terror nazista. Certamente, ter visto “os cadáveres […] aos montes” o fez conceber a tese em questão.
Até sua publicação, pouco se sabia sobre as experiências de Janina no Gueto e fora dele nos anos de Guerra. Janina o escreveu a partir de seu diário que não foi destruído com a queda de Varsóvia. Assim, é um relato de suas memórias de adolescência que, após a guerra, preferiu esquecer. Janina deixou de lado por 40 anos o terror que havia vivido no Gueto. Ficaram guardadas até a morte de sua mãe, quando as recuperou.
Após a publicação de Inverno na Manhã, Bauman se dedicou a escrever o que chamou de “uma Sociologia do Holocausto”. Talvez o que mais o tenha impactado foi o tom livre de amarguras e ódio que Janina expôs no livro. Também o modo como ela descreveu “a mais dura das lutas” que “é continuar humano em condições inumanas”. Portanto, o propósito de Zygmunt foi investigar, de modo obsessivo, os motivadores do holocausto.
A ideia central de Modernidade e Holocausto
A conclusão de Modernidade e Holocausto é o que o faz ser seu maior monumento. Ela talvez seja aquela de maior representatividade e o maior legado do autor.
Em síntese, para Bauman o holocausto não foi o produto da irracionalidade humana. Não foi um passo para trás na promissora história moderna ou uma grande pedra no caminho do progresso. Esta compreensão, conforme Bauman, é ao mesmo tempo enganosa e perigosa. Isso porque, em suas palavras:
“O holocausto foi o encontro único entre as velhas tensões que a modernidade sempre ignorou, desdenhou ou fracassou em resolver, e os poderosos instrumentos da ação racional e eficaz aos quais a evolução moderna deu origem”.
(BAUMAN, 1989, p. 20)
Conforme Bauman, o holocausto foi produto da razão humana e o resultado do teste mais significativo ao qual a modernidade a impôs. Esta compreensão, muito diferente do que expunha o status quo, possibilitou a Bauman chegar a uma conclusão ainda mais significativa.
Para ele, a sombra dos motivadores e causas do holocausto ainda repousam sobre nossos ombros. Por isso é imperativo que, a partir dessa consciência, possamos criar mecanismos de proteção para evitar que ele se repita. Como? De outra maneira, em outro formato ou com outros povos, raças e etnias.
Uma conclusão preliminar
Modernidade Líquida é um monumento literário produzido por Zygmunt Bauman. Sua leitura é indispensável. Sua mensagem é potente. E, por fim, sua contribuição é inestimável.
Entretanto, Modernidade Líquida não é o maior monumento de Bauman. É difícil, inclusive, julgar sua obra comparando duas obras tão distintas. Mas este exercício foi necessário.
Modernidade e Holocausto nos deixou um alerta. Uma mensagem forte sobre os perigos que nos perturbam e que, no entanto, negligenciamos.
Pedro Henrique Máximo
Arquiteto e Urbanista. Doutor em Arquitetura e Urbanismo (UnB). Professor e pesquisador.
A infância de Zygmunt Bauman, em especial nos anos da Segunda Guerra Mundial, pode nos trazer explicações sobre sua postura intelectual quando adulto? Bauman teve uma infância difícil. Viveu o antissemitismo em sua terra natal. Foi fugitivo na Segunda Guerra Mundial quando adolescente. No início da vida adulta integrou o Exército polonês e lutou contra os nazistas até a tomada de Berlim em 1945.
Imagens dos documentos do jovem Zygmunt Bauman enquanto membro do Exército.
Zygmunt Bauman
Bauman: uma biografia, da socióloga Izabela Wagner (2020), foi publicado no Brasil pela Editora Zahar. Para nós brasileiros, é o primeiro relato em língua portuguesa da história completa de um dos maiores intelectuais dos últimos anos. Até sua publicação, tivemos acesso a apenas fragmentos de sua história. Confesso que estou ansioso para ler Bauman, do jornalista Dariusz Rosiak publicado em 2019, e Exílio: 21 cenas da vida de Zygmunt Bauman, do jornalista Artur Domosławski, publicado em 2021. A dificuldade: estes dois livros foram publicados somente em polonês.
Este texto inicia uma série #SobreBauman, na qual pretendo construir com vocês uma visão panorâmica da relação entre vida e obra. Os relatos aqui apresentados, bem como seus detalhes, encontram-se detalhados no livro de Izabela Wagner.
Fiz uma espécie de resumo, acrescentei algumas informações e fiz o mapeamento do percurso de Bauman durante a Guerra, para compreendê-lo. Algumas informações sobre essas cidades são relevantes para nossa análise e aconselho a consultar tal mapa durante a leitura. Em síntese, constatei que Bauman percorreu mais de 7 mil quilômetros dos 13 aos 19 anos. Passou por 5 países e morou em 8 cidades por mais de dois meses entre 1939-1945.
Percurso de Zygmunt Bauman ao longo da Segunda Guerra Mundial. Elaborado por Pedro Henrique Máximo, 2021.
A infância de Zygmunt Bauman no pré-Guerra
Bauman nasceu em Poznań, uma das cidades mais importantes da Polônia e capital da região da Grande Polônia, em 19 de novembro de 1925. Poznań fica, em linha reta, entre Berlim e Varsóvia, sendo a distância entre ela e as duas capitais quase a mesma: aproximadamente 300 quilômetros.
Maurycy Bauman e Zofia Kon eram seus pais, judeus, situados entre a classe média e a classe trabalhadora, ou seja, possuíam recursos, mas limitados. Bauman tinha uma irmã mais velha, Tauba, também chamada de Tosia.
A década de 20, quando Bauman nasceu e cresceu, foi marcada por uma série de movimentos antissemitas do ponto de vista social e institucional. Na Polônia o conflito entre os poloneses e os judeus poloneses (nomeação veementemente negada em contexto nacional, pois não era possível ser um judeu e polonês ao mesmo tempo, acreditavam) era histórica e intensa. Tal processo ficou mais grave quando o país – e a cidade – recebeu parte dos judeus burgueses do Leste após a Revolução Russa, movimentando mais intensamente os negócios e as economias urbanas.
O Democracia Nacional, partido de direita, era conhecido por sua proposta de uma nação sem de judeus. A situação era mais difícil porque Poznań era uma das cidades onde o Democracia Nacional era mais forte e ganhava adeptos. Do ponto de vista nacional, pairava sobre a Polônia um espírito nacionalista semelhante ao que repousou sobre a Alemanha.
Maurycy, que era comerciante, sofreu com os boicotes às lojas cujos proprietários eram judeus. Após sua falência e tentativas de se reerguer, Maurycy tentou suicídio pulando no rio Warta. A matéria divulgada pela imprensa foi “Judeu tenta suicídio. Salvo por escoteiros poloneses”. Por esta nota da imprensa é possível observar a radical divisão entre os concidadãos poloneses naquelas décadas.
Zygmunt Bauman, o antissemitismo e a Hashomer Hatzair
Zygmunt Bauman sofreu gravemente com o antissemitismo em sua infância e adolescência. Dos 7 aos 13 anos, já na década de 1930, foi uma “presa amiga” na escola e ginásio (só havia duas escolas secundárias públicas que aceitavam alunos judeus sob a numerus clausus, que permitia uma cota de até 10% de judeus, mas sob teste), onde os colegas podiam descarregar sobre ele seu ódio, cultivado em casa pelos pais, em relação aos judeus. Bauman estava sozinho (era o único judeu em uma escola numa área católica da cidade) e precisava ser menos humano para suportar as humilhações. Certo dia, sua mãe foi buscá-lo na escola, e foi, assim como ele, humilhada pelos jovens perseguidores de Bauman, por sua judaicidade.
Na escola, judeus poloneses eram impedidos de tirar notas maiores que os poloneses, ainda que se sobressaíssem nos testes e provas. Não havia lei para isso, mas os professores partilhavam desse código social.
Sua saída foi uma infância isolada, acompanhada pelos livros e pelo piano, que foi forçado a aprender tocar. Quando criança Bauman havia tido contato com literatura polonesa, e clássicos como Victor Hugo e Liev Tolstói.
Pouco tempo antes da Guerra, Bauman fez parte da Hashomer Hatzair, uma organização sionista de 100 jovens judeus poloneses também excluídos em seus contextos cotidianos, onde conseguiu encontrar um ambiente social que o aceitava. Na escola, restrições severas. Na Hashomer Hatzair, sociabilidade, onde podiam sonhar com uma nação livre do racismo estrutural.
O início da Grande Guerra
Não é novidade que o país mais afetado durante a Segunda Guerra Mundial foi a Polônia. A invasão da Alemanha nazista ao país em 1º de setembro de 1939 deu início ao conflito Global. Até a tomada de Varsóvia, capital, foram 25 dias.
Nestes dias iniciais de Guerra não havia quem pudesse conter o terror nazista e sua máquina de destruição. As cidades menores do interior da Polônia foram saqueadas, sinagogas destruídas, zombaria generalizada aos judeus poloneses, estupro e assassinatos em massa. Nas cidades de maior tamanho, aquelas que podiam apresentar certa resistência, a capacidade de combate de soldados e civis durou pouco. Em algumas, poucas horas. Em outras, poucos dias.
Todo o país sofreu. No entanto, como em qualquer período de crise ou guerra, as minorias sociais foram as mais penalizadas. Os judeus poloneses já enfrentavam o grave antissemitismo antes da Guerra. Ações de cunho institucional para cerceamento e restrição da mobilidade, ocupação de cargos e posições sociais na Polônia foram de mesmo teor que aquelas aplicadas pela Alemanha nazista do pré-guerra.
Os Bauman fogem para o leste
A Alemanha bombardeou Poznań no primeiro dia de Guerra. Bauman tinha 13 anos. No dia 02 de setembro os Bauman decidiram fugir na direção oposta da marcha alemã. Pegaram um trem até Inowrocław pela noite, que foi até o destino sob bombardeio e tiros. Foram cerca de 120 quilômetros. De lá foram até Włocławek na carroça de um camponês, pois as estradas que partiam de Inowrocław já estavam destruídas. Foram mais 65 quilômetros. Até Mława e Ostrołęka, na fronteira da ocupação alemã com a ocupação soviética, os Bauman seguiram por meio de carroça, cavalo e caminhando em grupo por estradas secundárias.
A distância entre Ostrołęka, território alemão, e Łomża, território soviético, era de 35 quilômetros. Os Bauman só conseguiram atravessar a fronteira ao final de setembro. Łomża era uma cidade repleta de refugiados, tal qual Białystok, capital da região da Podláquia, para a qual se dirigiram.
Com a impossibilidade de permanecer Białystok, em função dos altos aluguéis e indisponibilidade de locais para ficar, os Bauman decidiram ir para Molodechno (Molodeczno ou Maladzyechna), na Bielorrússia, cerca de 820 quilômetros de Poznań. Lá conseguiram se instalar em novembro e permaneceram por aproximadamente 18 meses.
Zygmunt Bauman, um adolescente na Molodechno pacificada
Molodechno fica a aproximadamente 70 quilômetros de Minsk, capital da Bielorrússia. Lá havia emprego em abundância e locais de permanência a um custo acessível, pois era uma “cidade-guarnição” do Exército. Diferentemente de Łomża e Białystok, não era uma cidade superlotada, pois a migração para território soviético, entre os poloneses, era impopular. No entanto, em Molodechno era possível uma experiência multiétnica e multilinguística. Várias pessoas de vários locais da União Soviética moravam na cidade.
A estadia prolongada dos Bauman em Molodechno permitiu que eles compreendessem do sistema soviético. Há contradições importantes.
Contato com o território soviético
Por um lado, a abundância de empregos sinaliza a quantidade de trabalho a ser feito para construir o território e equipá-lo. Por outro lado, a escassez de alimentação era uma dificuldade que acompanharia os Bauman por todo o período de Guerra e pós-Guerra.
Não havia a discriminação entre o trabalho feminino e o masculino observada em território polonês. Assim, Zofia logo encontrou trabalho na cantina dos oficiais e teve uma relativa ascensão, assim como outras muitas mulheres. Na escola não havia separação por gênero, como em Poznań. Era uma escola mista, não havia antissemitismo (um dos fatos mais impactantes para Bauman) e com professores do mais alto gabarito. Por outro lado, havia corrupção na gestão dos recursos públicos. Maurycy trabalhou como escriturário e contador no Distrito Militar Ocidental das Forças Armadas da Federação Russa, e constatou este comportamento de modo indiscriminado.
Bauman teve um período de relativa paz em Molodechno. Lá, além de ter estudado em uma instituição bielorrussa e uma russa, entrou para a Komsomol – uma poderosa instituição de jovens do Partido Comunista – e trabalhou como voluntário na biblioteca da escola, onde pôde ter acesso a diversas obras de diversos escritores.
Os Bauman em território russo
Com a invasão alemã do território soviético em 22 de junho de 1941, os Bauman seguiram sua epopeia e migraram mais uma vez para o Oeste. Dessa vez, entraram num trem em direção à Rússia para o território mais longínquo possível.
Após um mês de viagem, desembarcaram em Krasnie Baki, na região da cidade de Gorki (Nijni Novgorod ou Nijni). Krasnie Baki fica a aproximadamente 650 quilômetros de Moscou e 2.270 quilômetros de sua cidade natal.
Instalaram-se na cidade de Shakhunya, e lá Bauman completou sua formação no Liceu nº 14 e concluiu o curso de soldador na Escola Secundária da Ferrovia. Por um tempo trabalhou na ferrovia da cidade, enquanto aguardava a resposta da Universidade de Gorki para seu ingresso no curso de Física após um rígido processo de seleção. A princípio, por volta dos 16 anos de idade, Bauman queria estudar cosmologia ou ser astronauta. Queria compreender a origem do universo.
Um acadêmico de Física na Universidade de Goirki, à distância
No Outono de 1942 o jovem Bauman se matriculou no curso e universidade pretendidos. Logo se mudou para a Gorki (atual Nijni), a capital da região. Lá viveu por 2 meses e logo teve que sair da cidade em função de sua condição de refugiado. O Parágrafo II em voga previa que nas maiores cidades da Rússia não poderiam habitar os refugiados de guerra.
No retorno para Shakhunya, Bauman teve que se mudar para Vakhtan. Seus pais haviam deixado a cidade para trabalhar na Lesprodtorg – empresa nacional de produção de madeira. Vakhtan é um pequeno vilarejo ao norte de Shakhunya no meio da densa floresta de Novgorod. O vilarejo fica cerca de 2.325 quilômetros de Poznań, o local mais distante que Bauman esteve de sua cidade natal desde o início da Guerra.
Lá Bauman trabalhou inicialmente na Lesprodtorg. Posteriormente, atuou como bibliotecário e como professor de matemática numa escola local. Neste período, Bauman ainda cursava Física na Universidade de Gorki por correspondência.
Ali, um dos dados mais interessantes da trajetória de Bauman foi seu encontro com a biblioteca local. Vakhtan era uma cidade isolada que não havia passado por censura da gestão stalinista. O resultado foi uma biblioteca completa, sobre a qual Bauman se dedicou profundamente a leituras proibidas em território soviético, durante os dias gélidos no meio da floresta e à luz de velas à noite, em função da constante falta de energia.
Zygmunt Bauman em Moscou
Ao 18 anos, em 1943, Bauman foi convocado para o trabalho no ambiente de Guerra. A princípio foi para Moscou, onde trabalhou no 7º Departamento de Controle de Tráfego por 3 meses e fez parte da Milítsia (polícia).
Por um lado, tal atitude pode ser analisada como uma proteção a um membro ativo da Komsomol que havia concluído o ensino soviético com mérito, que cursava o segundo ano de estudos universitários e um possível futuro integrante da intelligentsia (classe de intelectuais). Por outro lado, sua judaicidade poderia ter sido outro fator para um jovem qualificado como Bauman, em tempos de guerra, ter sido designado para controlar o tráfego de Moscou, o que era comum nas orientações de algumas repartições da administração do Partido Comunista.
Bauman se alistou voluntariamente no 1º Exército polonês na União Soviética. E imbuído de sentimento nacionalista difundido pelas revistas Novos Horizontes e Polônia Livre, solicitou ingresso à Divisão polonesa a Marian Naszkowski. Naszkowski era um oficial político da 1ª Divisão da Infantaria que estava em Moscou, que, assim, conseguiu redirecioná-lo para a 4ª Divisão em Sumy, na Ucrânia.
Zygmunt Bauman e sua formação militar na Ucrânia
Na sequência, Bauman foi enviado para Sumy, onde se concentrava o Exército Polonês e onde se preparava novos soldados na Escola de Oficiais. Sumy fica a uma distância de 600 quilômetros de Moscou. Lá chegou em abril de 1944 e foi designado líder de pelotão. Seu treinamento foi oficialmente concluído em junho e foi promovido a subtenente em 26 de agosto (já no front). Lá Bauman pertenceu à 6ª unidade (6º Regimento da Artilharia Ligeira) da 4ª Divisão.
Foram enviados de Sumy para Kharkiv, uma das maiores cidades ucranianas. De lá seguiram até Olyka na direção oeste, próximo à cidade de Kowel, já anexada pelos soviéticos do território polonês. De Kharkiv a Olyka são cerca de 750 quilômetros. Desde que partiram de Białystok em direção a Molodechno, é a primeira vez que Bauman se encontra próximo ao antigo território polonês e a cerca de 750 quilômetros de Poznań.
Sua sólida formação marxista-leninista o possibilitou ser uma pessoa influente na 4ª Divisão, pois trabalhou também no processo de formação de novos soldados recrutados para o enfrentamento aos nazistas. Após o massacre de Katyn, onde os líderes do Exército polonês acusados de espionagem foram eliminados pelos soviéticos, não havia oficiais de guerra poloneses que dominassem a língua, o que explica uma pessoa tão jovem ser colocada no posto de subtenente.
Bauman desempenhou um importante papel de propagandista do comunismo entre os soldados e civis das cidades libertadas até o final da guerra. Havia, por um lado, carência de informações sobre a guerra nestas localidades, ambientes que tiveram clara aceitação às ideias ali difundidas. Certamente, por gratidão pela libertação. Bauman, no entanto, cumpria essa atividade com prazer, pois acreditava nos ideais. De certo modo, ele o havia vivido e visto como sucesso, tendo em vista sua trágica experiência antissemita na infância em Poznań. Bauman, no entanto, estava imbuído de sentimento nacionalista, levava com clareza a mensagem com a intenção de que na Polônia se instalasse um socialismo suave à la polonaise.
Neste momento de sua jovialidade, Bauman conseguiu desenvolver sua habilidade de falar em público. Adquiriu potente oralidade e capacidade argumentativa que posteriormente seria destacada em suas atividades como militar, professor e palestrante.
No front de batalha
Em Olyka a 4ª Divisão tomou uma atitude defensiva contra os nazistas até a ordem de seguir rumo ao território que outrora era polonês. Em 21 de julho os Exércitos polonês e soviético libertaram Chełm e Lublin. A entrada da 6ª unidade da 4ª Divisão, onde Bauman se encontrava, permaneceu em Chełm para cuidar da guarnição e posteriormente chegaram em Lublin.
Um fato de destaque é que quando entraram em Lublin encontraram o campo de concentração de Majdanek, um dos terríveis campos de concentração nazista construídos em território polonês. Sobre o evento, Bauman escreveu a seu amigo Keith Tester em 2016: “Os cadáveres ainda jaziam ali aos montes, sua reciclagem iniciada, mas ainda inacabada.”
Campo de Concentração de Majdanek, em Lublin, o qual Zygmunt Bauman teve contato depois da libertação em 1944.
Zygmunt Bauman em Varsóvia, do outro lado do Vístula
De Lublin foram em setembro de 1944 para Praga, a região leste de Varsóvia, que libertaram. Por outro lado, a região central de Varsóvia (do outro lado do rio Vístula) estava sendo destruída pelos nazistas. O Exército polonês foi impedido pelo Exército Soviético de prosseguir e tentar defender sua capital, ao menos até a ordem de Stalin, que não chegou (já havia um acordo entre Estados Unidos, Inglaterra e União Soviética de que Stalin comandaria as ações na Polônia e que não interferiria nas ações de Roosevelt e Churchill na África, Itália e França – o que explica a não ofensiva de parte dos Aliados à destruição de Varsóvia).
Desobedecer a ordem de esperar e tentar cruzar o Vístula era crime de morte. Lá esperaram até 12 janeiro, quando os Exércitos polonês e soviético libertaram a cidade após 5 dias de conflito. Durante a destruição de Varsóvia, Janina, a futura esposa de Bauman, estava resistindo sob os escombros e bombardeios.
A Muralha Pomerana e a Batalha de Kołobrzeg
No dia 16 de janeiro a 4ª Divisão atravessou o Vístula, e perseguiram os nazistas até a Muralha de Pomerana, um local estratégico para a defesa das forças alemãs. A 4ª Divisão ficou conhecida como “a Pomerana”, pelo enfrentamento aos nazistas juntamente com o Exército Soviético. Muitos morreram.
Após a vitória em Pomerana, o Exército polonês em suas Divisões seguiu para Kołobrzeg (no norte da Polônia, uma cidade praiana do Oceano Báltico), onde o Exército polonês lutou sozinho contra os nazistas enquanto o Exército Soviético sitiou a cidade.
A batalha de Kołobrzeg foi a mais mortífera já enfrentada pelo Exército polonês, em função da obsessão de Hitler em defender suas fronteiras que equipou a cidade e enviou para lá grande quantidade de soldados. Dia 17 de março, penúltimo dia de batalha, Bauman foi atingido na escápula. Foi atendido em um hospital em Stargard Szczeciński, onde passou por uma cirurgia sem anestesia num dos hospital dirigidos pelos soviéticos.
A batalha de Kołobrzeg.
Zygmunt Bauman em Berlim e o fim da Guerra
Após cinco semanas de tratamento no hospital de Stargard Szczeciński, Bauman saiu à procura da 4ª Divisão. Após dias de investigação, descobriu que Berlim estava sendo tomada e conseguiu se dirigir até lá. Chegou no dia 03 e maio (BAUMAN, 2021) no distrito de Köpenick.
Berlim estava em chamas. Os tiroteios prosseguiram até a noite do dia seguinte, quando o Exército Soviético tomou Chancelaria de Hitler e o Reichstag, momento que o Wehrmacht (forças armadas alemãs) capitulou. Bauman não teve a oportunidade de conquistar Berlim, somente vê-la destruída e lutar nos seus arredores.
Após o final da Guerra a 4ª Divisão permaneceu no leste alemão para organizar a nova divisão territorial. Lá permaneceram até o final de maio. Bauman foi integrado à KBW ou Corpo Interno de Segurança, tal qual os outros militares.
Lições da juventude de Zygmunt Bauman
Temos um panorama da juventude de Zygmunt Bauman nos anos de Guerra que a potente biografia escrita por Izabela Wagner nos trouxe. Diante dele é possível concluir algumas lições:
Enquanto jovem sofreu fortemente com o antissemitismo polonês, diante do tipo de nacionalismo praticado no país, seja em ambiente escolar, seja na vizinhança.
Durante a guerra, conheceu um número de cidades e países que grande parte de jovens não conheceria em ambiente de normalidade. No entanto, sua diáspora em terras bielorrussas, russas, ucranianas, polonesas e alemãs, que ocorreu em condições de extrema pressão e conflito, o permitiu conhecer extremos.
Em função dessa diáspora, Bauman aprendeu diversos idiomas e entrou em contato com ambientes multiétnicos e multilinguísticos. Estes temas, assim, foram fortemente discutidos em seus livros como solidariedade, alteridade, empatia, mixofobia e mixofilia.
Seu contato com as teorias marxista-leninistas ainda na juventude, aliado à evidente ausência de antissemitismo em território soviético, contribuíram significativamente para sua crença neste modelo político-econômico.
Sua experiência como militar como suboficial garantiu que ele conquistasse habilidade oratória e argumentativa. Além do mais, Bauman desenvolveu uma disciplina rigorosa que levou para sua posterior vida militar, política, acadêmica e como escritor.
Seu contato com o campo de concentração de Majdanek o levou a refletir e escrever, ainda que décadas depois, Modernidade e Holocausto (1989).
Sua vida em Vakhtan como bibliotecário e seu contato com o curso de física na Universidade de Gorki desenvolveram um senso de cuidado importante. Em suma, ele sabia da necessidade de guardar em segredo a existência daqueles livros e que ele teve contato aprofundado com eles. Portanto, Bauman, aos 17 anos, sabia das limitações à liberdade impostas pelo stalinismo.
Por fim, certamente sua experiência no curso de Física na Universidade de Gorki o levou a considerar, posteriormente, a utilização da metáfora dos líquidos em Modernidade Líquida.
BAUMAN, Zygmunt; HAFFNER, Peter. Estranho Familiar: conversas sobre o mundo em que vivemos. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
WAGNER, Izabela. Bauman: Uma biografia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020
Pedro Henrique Máximo
Arquiteto e Urbanista. Doutor em Arquitetura e Urbanismo (UnB). Professor e pesquisador.
O Mundo Líquido de Bauman é muito discutido. Mas, apesar de aparente simples, para compreendê-lo é necessário um mergulho mais profundo em seus livros. Neste texto vamos compreender em quais obras podemos encontrar os fundamentos para este conceito.
Pavilhão da Água (HtwoOexpo), em Neeltje Jans, Holanda, 1997. Projeto do NOX. Uma arquitetura líquida para um mundo líquido.
SOBRE O MUNDO LÍQUIDO DE BAUMAN
Os resultados das pesquisas no Google sobre o “mundo líquido” ou o “mundo líquido de Bauman” nos ajudam a ter uma ideia do que foi pesquisado. No entanto, os resultados não são precisos.
Grande parte deles recai no senso comum de que o mundo líquido é fluido. Não obstante, inconstante, que muda de forma o tempo todo e por isso seu estado e consequências são imprevisíveis. Em síntese, simplificando ao máximo, é exatamente isso. Mas, não passa de uma simplificação sobre a qual cada um interpreta como quer ou como deseja. Afinal, somente expõe as propriedades dos líquidos que qualquer manual de física é capaz de nos apresentar. Embora haja um box organizado pela Zahar com 4 de suas obras fundamentais, nomeado de Para entender o Mundo Líquido, esta é só uma fração da totalidade de sua obra.
Para se chegar a tal conclusão, “tudo no mundo parece não durar”, não precisa de muito esforço. É uma constatação óbvia!
Então, por que este assunto é relevante?
Se essa é uma metáfora relevante e se ela pode nos ajudar a compreender o mundo que vivemos, precisamos considerar três perguntas:
Quais os motivadores e razões de tais mudanças?
Para quais direções elas estão indo?
Para onde tais transformações estão nos levando?
É aqui que se encontra o brilho de Bauman. Também a razão de uma simples metáfora ter tanta notoriedade. Bauman analisou as causas, as possíveis direções e as consequências dessa instabilidade que tanto nos assusta.
Em síntese, são 12 livros que traduzem o mundo líquido baumaniano. Impossível compreendê-lo a partir de um só. Em cada um deles, Bauman refletiu sobre algum aspecto que ajuda a desenhar seus contornos. Sua aparente repetição não passa de uma aparência necessária. Neles há processos de aprofundamento de temas ou discussões que não puderam ser feitos anteriormente. Para cada livro novo, que parece redundante, há um continente conceitual e temático que ele descobriu ou explorou em sua viagem pelo mundo líquido.
12 livros para compreender o mundo líquido de Ztgmunt Bauman
UMA TRILOGIA PARA O MUNDO LÍQUIDO
É comum na obra de autores mais experientes a continuidade de suas reflexões em diversos livros. Alguns organizam suas potentes teses em livros que, juntos, materializam sua grande proposição. Neste sentido, ao lado de Bauman encontram-se Michel Foucault, Eric Hobsbawm, Manuel Castells, Peter Sloterdijk, Yuval Harari, entre outros tantos.
Trilogia para o Mundo Líquido. Fonte: Pedro Henrique Máximo, 2021.
Globalização: as consequências humanas
Em Globalização: as consequências humanas, Bauman constatou algo interessante. Identificou que havia um distanciamento entre poder e política. O que o produziu? A Globalização. Por que? Ela roubou dos lugares a capacidade de solução de seus próprios problemas. Ou seja, a globalização tirou o poder da política. Uma espécie de divórcio sem a anuência ou concordância de uma das partes. Um divórcio litigioso.
A Globalização não acabou com a política. Não a destruiu. O que ocorreu em depois desse divórcio é que a política continua a ser local. Ela ainda é praticada por cidadãos e governantes. O que mudou então? O poder está longe desses atores políticos. Ele circula. Vai daqui para acolá. Volta, e depois nos deixa novamente.
Assim, este fenômeno inédito trouxe consequências diversas. No livro, Bauman analisou as consequências humanas. O que ocorreu com os habitantes das cidades? E com o vendedor da esquina? Com proprietário da padaria? O que aconteceu com os trabalhadores? E com as elites econômicas?
Bauman identificou que se instalou nas cidades um clima de guerra. A insegurança é um de seus sentimentos comuns. O medo também. Mas houve um conjunto de consequências concretas. A fome, a pobreza, a desigualdade, o desemprego. Todos estas características somadas a boa dose de incerteza.
Enquanto isso, as elites que detêm poder determinam aonde será o próximo investimento. Se na África do Sul, na China, no Brasil ou no México. O que importa é que ele extraia daquele novo lugar o máximo possível. Por outro lado, os governantes e as populações locais têm de fazer concessões para tornarem seus locais mais atrativos. Essas concessões, no entanto, causam sofrimento às pessoas.
Em busca da política
No livro Em busca da política, Bauman fez uma extensa investigação sobre as distorções da vida pública causadas pela separação entre poder e política. Ou seja, deu sequência à investigação iniciada no livro anterior.
Para ele, ocorreu neste pós-divórcio uma espécie de atomização do indivíduo. O que isso quer dizer? Sobre os ombros de cada pessoa recai a sorte de problemas que ela não causou. Em outras palavras, o indivíduo é responsabilizado por seu sucesso e fracasso, ainda que em ambiente social sob pressão.
Os agentes da Globalização prometeram aos indivíduos a liberdade. Aos gestores públicos também. No entanto, essa liberdade não foi criada, discutida e regulamentada pelos cidadãos, mas imposta. Em síntese, uma espécie de imposição sutil e às vezes silenciosa.
Por um lado, esta liberdade chegou aos países e nações por meio da Democracia Liberal. Unânime entre os países do Ocidente na virada do século 21. Ironicamente, Bauman a nomeou de “A economia política da incerteza”, pois introduziu uma concepção de liberdade altamente imprecisa. Imprecisa porque possui diversos contornos que, na verdade, se assemelham a uma imensa prisão.
Modernidade Líquida
Com Modernidade LíquidaBauman concluiu a trilogia para o Mundo Líquido. Diante destes três livros já era possível aferir uma mudança estrutural no mundo.
Certamente o maior engodo do termo “pós-moderno” ou “pós-modernidade” era seu caráter negativo. Ou seja, só dizia o que não éramos mais. Mas Bauman, por sua vez, ousou dizer o que somos: ainda somos modernos. Para ele, a modernidade não só não acabou, como foi aprofundada.
Há algumas razões para isso. Em primeiro lugar, porque a ideia ou concepção da pós-modernidade teria soado como uma farsa, uma constatação precipitada ou um exercício tolo de futurologia. Exercício que ele mesmo teria incorrido anteriormente.
Em segundo lugar, porque o que havia mudado não era a natureza de nossa Era, mas seu agravamento e expansão. Essa expansão produziu mudanças profundas no modo como vivemos o mundo e suas contradições.
Daí a metáfora do líquido. Uma matéria só muda de estado quando há um aumento da temperatura ou um aumento de pressão. A globalização introduziu mais pressão aos países e lugares. Não obstante, também fez aumentar a temperatura desses lugares. Em síntese, o resultado é uma combinação infinita de processos em transformação. Tudo muda, tudo se altera e tudo se desloca.
No livro Bauman analisou alguns pontos. Fez um destaque da compreensão geral que se tinha da modernidade, por ele nomeada de sólida. Analisou estes pontos em nossos dias. Eles ainda existem? Se sim, o que permaneceu e o que mudou?
Em resumo, Bauman analisou 5 temas. Cada um deles foi exposto em um capítulo. Emancipação e Individualidade são os dois primeiros. Os três últimos são tempo/espaço, trabalho e comunidade. Estes temas foram importantes para a modernidade sólida. Ainda o são para a modernidade líquida.
Podemos, neste sentido, atribuir a Bauman uma categoria em sua carreira como sociólogo: a fase líquida. Foram 20 anos de pesquisas, entre ensaios e teses publicadas em livros, entrevistas, textos em jornais e revistas.
Interpretações e aprofundamento do mundo Líquido. Elaborado por Pedro Henrique Máximo, 2021.
Livros que esclarecem a visão de Bauman sobre o Mundo Líquido
Em Amor Líquido (2003) Bauman analisou as transformações dos laços humanos nas esferas pública e privada. Apontou para uma fragilidade evidente e latente nesses laços e o papel das redes na providência dessa versatilidade e flexibilidade de relações. EmVida Líquida(2005) acrescentou considerações sobre o afrouxamento das relações humanas já discutidas em Amor Líquido. Além disso, postulou sobre a condição de insegurança que trouxe uma nova vanguarda ao século 21: a vanguarda do eterno recomeço.
Medo Líquido (2006) é fruto de suas reflexões sobre as grandes cidades e os fantasmas que elas nos impõem: violência urbana, terrorismo, rejeição amorosa, grandes diásporas e desemprego. Bauman constatou o grande papel das redes, do marketing e das grandes corporações nesses locais. Neles, ao passo que se instala o medo generalizado, multiplica-se os dispositivos de controle e vigilância.
Em Tempos Líquidos (2007) Bauman dá continuidade às reflexões sobre as metrópoles globais e a mudança do pensamento social. Sua atenção se dá à compressão do espaço e do tempo, noção que permeará suas análises sobre a competitividade de mercado (transformada em campos de batalha), a pressão global sobre as identidades e tempos locais e conclui que estes são fatores que contribuem para o agravamento do medo e da insegurança, pois colaboram para a desestabilização da solidariedade social.
Na sequência Bauman publicou um conjunto de ensaios em A cultura no mundo líquido moderno (2011). Nele analisou o conceito de cultura sob diversos prismas: moda, as nacionalidades, o mercado e o Estado, as diásporas, a globalização e a União Europeia.
Zygmunt Bauman colunista
Após este longo percurso repleto de ensaios, Bauman assumiu claramente a noção de mundo líquido, que pode ser traduzido da seguinte maneira:
“[…] esse mundo, nosso mundo líquido moderno, sempre nos surpreende; o que hoje parece correto e apropriado amanhã pode muito bem se tornar fútil, fantasioso ou lamentavelmente equivocado. Suspeitamos que isso possa acontecer e pensamos que, tal como o mundo que é nosso lar, nós, seus moradores, planejadores, atores, usuários e vítimas, devemos estar sempre prontos a mudar: todos ansiamos por mais informações sobre o que ocorre e o que poderá ocorrer. Felizmente, dispomos hoje de algo que nossos pais nunca puderam imaginar: a internet e a web mundial, as “autoestradas de informação” que nos conectam de imediato, e tudo isso dentro de pequenos celulares ou iPods que carregamos conosco no bolso, dia e noite, para onde quer que nos desloquemos.
Felizmente? […]”
(BAUMAN, 2010, p. 8)
Este trecho é de 44 cartas para o mundo líquido moderno (2010). Este livro é composto por pequenos textos publicados na La Repubblica delle Donne entre 2008 e 2009. La Repubblica delle Donne é uma revista italiana semanal destinada ao público feminino. No livro há alguns textos bastante divertidos, nos quais Bauman expôs análises sobre as mídias sociais como Twitter e Facebook, Barack Obama, trabalho, solidão e sexo.
Diálogos sobre o mundo líquido publicados em livros
Na sequência destas publicações, Bauman fez uma série de parcerias com pesquisadores e escritores para discutir sua obra.
Diálogos sobre o Mundo Líquido. Elaborado por Pedro Henrique Máximo, 2021.
Destas, destacam-se três livros. Em Vigilância Líquida (2013), Bauman e David Lyon analisaram a constituição e expansão dos mecanismos de controle que superaram ou substituíram o modelo panóptico. Estes estão implantados em governos e no setor privado, nas cidades (nos espaços públicos e privados), e nos itens pessoais, como computadores e smartphones. Domina a noção de segurança, e o setor que mais lucra com ela é o ramo da proteção e empresas do setor.
Este livro é um importante complemento de Medo Líquido, assim como Mal Líquido(2013), desenvolvido por Bauman e Leonidas Donskis. Por fim, a obra póstuma Nascidos em tempos líquidos(2017), Bauman e Thomas Lencioni fizeram análises sobre assuntos muito atuais, como cyberbulling, tatuagem, cirurgia plástica, sexualidade e relações sociais mediadas pelas mídias sociais.
Este conjunto de obras auxilia a compreender o mundo líquido. Enfim, o mundo que vivemos. Zygmunt Bauman foi um dos principais tradutores desse mundo. Ele não somente constatou tais mudanças, mas investigou suas razões e possíveis direções. Além do mais, refletiu, como sociólogo, quais os possíveis impactos dessas mudanças para a vida humana. Novamente, eis o motivo de seu grande brilho.
Este texto é uma constatação, e as sínteses das obras aqui expostas não são mais que isso: sínteses. Cabe, a cada uma delas, um olhar atento. Esta tarefa faremos em outro momento.
Pedro Henrique Máximo
Arquiteto e Urbanista. Doutor em Arquitetura e Urbanismo (UnB). Professor e pesquisador.