Descubra a importância de compreender o pensamento de Zygmunt Bauman na contemporaneidade, a partir do seu mundo líquido, com o doutor Pedro Henrique Máximo.
A Sociedade de Consumidores é, para nosso amigo Bauman, pautada pela ideologia do consumismo. Nela, o consumo exacerbado, exagerado e supérfluo ganha status de sucesso, felicidade e bem-estar.
Ela é constituída por consumidores ávidos, competentes e engajados no ato do consumo; e Consumidores Falhos, sujeitos incapazes de se adequar à lógica do consumismo. Portanto, na Sociedade de Consumidores, a divisão sociológica está entre aqueles que têm acesso aos padrões de consumo estipulados pelo consumismo; e aqueles que não possuem acesso a ele ou cujo acesso é limitado (BAUMAN, 2010).
Os consumidores ávidos têm uma sensação de que pertencem a uma comunidade, cujo convite de acesso e permanência é sua capacidade de consumo verificada. Portanto, são eles próprios mercadorias a serem consumidas e testadas (BAUMAN, 2008, p. 76).
Essa comunidade artificialmente construída (BAUMAN, 2008, p. 94) não se estrutura por laços humanos fortes o suficiente para superar possíveis saídas abruptas de seus integrantes quando eventualmente se tornam consumidores falhos. Elas testam seus integrantes ao postularem e manipularem novos desafios ao consumo supérfluo, criando novas demandas e desejos.
Por fim, a cidadania, na Sociedade de Consumidores, passa a ser confundida ou diretamente relacionada à capacidade de consumo. Este é seu senso comum e fruto da cultura consumista que dela deriva (BAUMAN, 2008). A divisão social que ela impõe, portanto, indica: 1) aqueles que passam a ter aparente legitimidade de acesso e voz do ponto de vista político à esfera pública; 2) os aparentemente excluídos de acesso e voz a ele.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
BAUMAN, Zygmunt. Vida a Crédito. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
Na sociedade contemporânea o consumismo se coloca como estilo de vida. Diz, portanto, não somente à sua estrutura e modos de vida, mas ao ideal que dele se depreende. Participar do consumismo como prática de vida, ou seja, como consumidor ávido e competente, é sinônimo de bem-estar, sucesso e felicidade pessoal. É sinônimo, do ponto de vista sociológico, de fazer parte de determinados círculos sociais e de estar incluído, ainda que inconsciente, na “ideologia da felicidade pelo consumo” (BAUMAN, 2016, p. 93). O consumismo, diga-se, prática de consumo como fim e que extrapola as necessidades reais, é a lógica de funcionamento da Sociedade de Consumidores.
Consumidores falhos, por outro lado, são aqueles sujeitos que estão excluídos da lógica do consumismo. São, conforme nosso amigo Bauman:
1) os pobres e miseráveis que não conseguem entrar nos circuitos do consumo (BAUMAN, 2005);
2) aqueles que não conseguem se manter nestes circuitos, com entradas pontuais e de curta duração;
3) aqueles que, embora estejam dentro do sistema, não oferecem a ele um consumo satisfatório (BAUMAN, 2008).
Estas três categorias de pessoas vivem na Sociedade de Consumidores, são alimentadas pela mesma fonte do desejo e da sedução daqueles consumidores “decentes” e “normais”, mas ficam às margens. São consideradas pelo sistema como incapazes, insuficientes, incapacitadas e inabilitadas (BAUMAN, 1998; 2008).
Sabe aquele cartão de crédito que não foi autorizado pelo banco? Aquela viagem dos sonhos não realizada que mais uma vez terá que ser adiada? Enfim.
A capacidade de consumo dos Consumidores Falhos é considerada pelo sistema como insatisfatória. O acesso ao sistema por parte deles é limitada ou negada. Como consequência, do ponto de vista sociológico, os Consumidores Falhos também têm acesso limitado ou negado aos debates públicos e à esfera pública. Sofrem com a indiferença, a discriminação ou outros tipos de violência por não conseguirem acessar os padrões de consumo da Sociedade de Consumidores.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
BAUMAN, Zygmunt, BORDONI, Carlo. Estado de Crise. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
Como os bons vinhos, os melhores livros são aqueles que envelhecem bem. Eles transcendem o tempo da escrita para os tempos vindouros e, ainda que datados, carregam uma mensagem potente para a posteridade. Um bom livro passa pelo crivo dos críticos. Não é imune a julgamentos. Mas, em razão de seu conteúdo, sobrevive e resiste às armadilhas que o tempo histórico nos impõe em suas transformações.
Famoso globalmente por Modernidade Líquida, Zygmunt Bauman, falecido em 2017 aos 91 anos, nos deixou um imenso acervo sociológico e filosófico como herança. Sua fase “líquida”, mais recente, é uma fratura poderosa nas muralhas que separam universidade e sociedade. É um óbvio aceno aos mais jovens. É um convite com linguagem fácil aos mundos possíveis revelados pela sociologia. E, principalmente, um conjunto de cartas endereçadas a amigos distantes, desconhecidos e ainda por conquistar.
Mesmo depois de sua morte, Bauman continua a fazer amizades, companhias fiéis na longa jornada da compreensão do mundo. Isso graças a seus livros que envelheceram bem e resistiram às armadilhas do tempo histórico. É possível discordar de seus pensamentos, contrapor seus argumentos, levantar hipóteses outras e negar veementemente que estamos vivendo no mundo líquido-moderno. Mas, não é possível afirmar que Bauman e suas angústias traduzidas em textos não sejam uma boa companhia.
Embora sua fase “líquida” de Bauman esteja sempre em destaque, uma de suas obras que melhor envelheceu foi Modernidade e Holocausto, de 1989. Vencedora do Prêmio Amalfi como melhor livro de sociologia da Europa naquele ano, Modernidade e Holocausto nos traz uma mensagem potente que devemos, diante das adversidades impostas pela Covid-19, resgatar.
Para Bauman, após o Holocausto deveríamos criar um conjunto de mecanismos imunológicos à cegueira moral (para prevenção e defesa) imposta pela racionalidade alienante e burocracia estatal modernas, que naquele contexto era circunstanciada pelo nazifascismo, mas que ainda não estaria extirpada. Somente este conjunto de mecanismos imunológicos poderia inviabilizar que horrores análogos ao Holocausto se repetissem em outras localidades, contra outros povos e etnias, e, obviamente, em outros formatos respaldados por outras justificativas e conteúdo.
Para chegar a tal conclusão, nosso velho amigo Bauman estabeleceu por hipótese que o Holocausto não foi uma imensa pedra no caminho reto da modernidade, não foi um passo para trás no processo evolutivo da sociedade ocidental ou muito menos um surto irracional da humanidade, característico das sociedades pré-modernas. Outra importante consideração é o fato de que o Holocausto não foi somente uma “tragédia judaica”.
Essas duas visões aparentemente assustadoras são reconfortantes para a atmosfera social universal, pois guardam a promessa de uma autocura rápida. Colocar o Holocausto como um fenômeno bilateral entre alemães e judeus nos exime de culpa e responsabilidade sobre o terror ali produzido. No entanto, esse distanciamento tácito não passa de uma perigosa cegueira pós-Holocausto potencialmente suicida.
A primeira, guarda por princípio a negação de que o Holocausto nasceu, foi planejado e praticado no auge da civilização moderna, e era, portanto, um problema a ser enfrentado por esta civilização. A segunda, direciona os horrores do nazismo a um grupo marcado para morrer, mas encobre o fato de que 6 milhões de judeus foram aniquilados a mando de Hitler, mas o total de assassinados ultrapassou a marca de 20 milhões.
Como explicar tais números? Quem ousaria fazê-lo a fim de subtrair do curso da autocura social as duas visões ao mesmo tempo assustadoras e reconfortantes?
Parte considerável da população brasileira tem optado por seguir a lógica da rápida autocura.
Uma parte compreende Bolsonaro e sua gestão atrapalhada – mas ao mesmo tempo planejada -, como uma loucura, uma pedra gigante no curso da nossa história recente que, se removida pelo Impeachment ou nas eleições de 2022 tudo voltará ao normal, tudo será como era antes, lindo e belo.
Uma segunda parte se tranquiliza e se orgulha ao saber que não digitou 17 nas urnas e confirmou. Diante do espelho, no entanto, não enxerga nada além do “ele não” e, ainda que em sofrimento, opta por aguardar o tempo passar.
Uma terceira parte, mais aguerrida e cega, se convence que mais de meio milhão de mortos se deu em decorrência da avassaladora presença do coronavírus em nosso território e que não havia nada a ser feito. No entanto, caiu na pegadinha do “não serão mais que 800 mortos”, “meu histórico de atleta”, “a pandemia não durará até julho de 2020”, e ainda continua a gargalhar quando o Presidente diz que não é coveiro ou imita uma pessoa sem ar com Covid-19.
As três posturas não ajudam a enfrentar o problema e a condição sociopolítica que repousa sobre nossos ombros. A primeira opta pelo caminho mais fácil. Aquilo que aparentemente está fora do normal é reconhecido como loucura. No entanto, os loucos não pagam pelo mal que fizeram como os sujeitos sãos. Tampouco removida a pedra do curso da história recente tudo voltará ao normal. Jamais voltaremos ao normal! As feridas abertas demorarão a fechar, e ainda que fechem, as cicatrizes ainda estarão ali. Além do mais, o antigo normal era péssimo e pré-condição para estarmos onde estamos; mas agora o louvamos, porque a situação atual é indizível.
A questão central não é Bolsonaro, mas a ideologia que ele incorpora e que agora está amplamente disseminada e distribuída como pólvora pelo território nacional. É preciso desarmá-la! A segunda é covarde. Não é preciso argumentar mais que isso! A terceira, sintoma forte da ideologia bolsonarista, é consequência direta daquilo que Bauman alertou (mas não somente ele) sobre os perigos que a ausência de mecanismos preventivos poderia trazer ao corpo social. Nega veementemente o problema central, foge de suas raízes, obscurece o debate e ri da maior piada de mal gosto já contada.
Nosso velho amigo Bauman estava certo! Primeiro, porque aliados ou não, o problema não é circunstanciado ou contingenciado a um grupo, mas geral, generalizado, humano e social. Segundo, porque a ausência de mecanismos imunológicos é pré-condição para uma avassaladora presença de Vírus e vírus mortais. Terceiro, porque se não encontrarmos as razões para estarmos onde estamos, qualquer caminho serve, qualquer direção nos parecerá viável, inclusive o retorno ao passado, o lindo e belo normal, que hoje propagam os saudosos como o paraíso perdido que devemos reencontrar.
Explicações simplórias sempre nos apresentarão uma versão reduzida do problema e, consequentemente, um diagnóstico equivocado das origens desse problema. Bauman, ao analisar o Holocausto como uma face da modernidade antes linda e bela, nos deixou uma potente mensagem que provavelmente seguirá sendo difundida pelas próximas décadas ou séculos. Como um bom vinho, Modernidade e Holocausto envelheceu bem! E Bauman, nosso velho e saudoso amigo, se mostra mais útil e necessário do que nunca!
A sociedade lobotomizada é um pequeno ensaio sobre os reflexos sociais da pandemia no Brasil, especialmente no que se refere às ações políticas em sua gestão.
Quando o Brasil bateu o recorde de número de mortes alcançando 1.972 decidi escrever este texto. Era 09 de março, dia do aniversário de 3 meses doWeColetivo. A angústia trazida à equipe por este número não permitiu que sequer mencionássemos a conquista. Afinal, estruturar, manter e expandir este projeto em tempos tão duros não tem sido tarefa fácil. Talvez, neste dia, tivemos uma noção clara da complexa lida que nos impusemos ao criar o We como uma multiplataforma de comunicação digital. Estes e outros dados que escancaram a absoluta tragédia brasileira passaram a fazer parte do nosso cotidiano, pois não lidamos com eles como espectadores. Os dados e números sobre tal realidade pulsam diariamente diante dos nossos olhos e ferem nossos espíritos, tal qual um punhal perfuraria nossas carnes.
O tempo e a dor não me permitiram, no entanto, proceder com a escrita naqueles dias. Era necessário, além de um mínimo de sanidade, pesquisa. O insight que tive precisaria ser verificado para não levar aos meus amigos e amigas, próximos e distantes, uma elucubração vazia e descolada da realidade. Hoje, infelizmente, consigo fazer claramente a relação que naquele momento ainda era pura ideação. Este texto é um primeiro esboço e quero compartilhá-lo com vocês.
Lobotomia generalizada
Há alguns meses assisti a série Ratched. Dentre muitos temas ali tratados, o principal, ao menos para mim, foi a Lobotomia. A Lobotomia foi um tipo de intervenção cirúrgica cerebral que tinha como técnica desligar os lobos frontais, direito e esquerdo, de todo o encéfalo. Objetivava curar doenças mentais, especialmente a esquizofrenia, e modificar o comportamento de pacientes. Era compreendida como psicocirurgia e era também chamada de leucotomia.
Lobotomia, para qualquer arquiteto minimamente atualizado, é tema familiar. O arquiteto holandês Rem Koolhaas, em Delirious New York (1978), tratou deste conceito ao ler as torres da cidade, em especial o edifício Athetic Club, no qual notou uma ruptura com um dos dogmas do Movimento Moderno Form follows Function ou Forma segue a função, concebido pelo “pai” dos arranha-céus de Chicago, Louis Sullivan, em seu ensaio de 1896, The tall office building artistically considered. Na arquitetura metropolitana de Nova Iorque, na torre, era possível encontrar uma variação, diversificação e multiplicidade de usos – às vezes incompatíveis entre si – em pavimentos diferentes ou nos próprios pavimentos, que não era possível ser identificado ou compreendido quando olhada por fora.
A lobotomia para a arquitetura foi profícua, diferente para o caso das ciências médicas, mas gerou o mesmo efeito: uma diversidade incomensurável de resultados. Para a arquitetura, a cisão entre a fachada e as funções internas permitiram verdadeiros espetáculos urbanos – em sentido positivo e negativo – como no caso do Museu Guggenheim de Bilbao, o Centro Cultural Georges Pompidou, em Paris, ou a sede da CCTV em Pequim, na China.
Para as cirurgias cerebrais os resultados foram imprevisíveis, danosos e absolutamente variados. Além da morte, muitos pacientes perderam a coordenação motora, tinham suas falas perdidas ou amansadas, tal qual seu comportamento; reflexões lógicas e corriqueiras não eram mais possíveis ou os pacientes se tornavam dóceis demais, fáceis de serem manipulados.
Direcionada inicialmente para casos de esquizofrenia, a Lobotomia se tornou o protocolo também “adequado” para homossexuais, depressivos e pessoas agitadas, explosivas, nervosas ou mesmo para adolescentes rebeldes. Por cerca de 45 anos, tal procedimento era realizado em cerca de 5 minutos, nas salas de cirurgia ou em quartos de hotel ou residências, em diversos lugares do mundo, sem anuência da família ou do próprio paciente. Os resultados, notadamente mais “adequados” às normas sociais de comportamento, foram aceitos como normais pelos familiares ou como efeitos colaterais do tratamento pela classe médica. Os resultados, mais uma vez, admitiam processos de zumbização das pessoas cujos comportamentos eram considerados inadequados.
Práticas sociais da Lobotomia
Talvez o principal motivo que explique o processo de zumbização social seja o divórcio e o medo da separação definitiva entre a poder e a política, conforme nos apontou Zygmunt Bauman em Globalização: consequências humanas. A política como exercício do poder cada vez minorada por dogmas frívolos, seja no corpo social ou de seus representantes, tem produzido diversas anomalias sociais e uma cultura própria: processos de subjetivação alheios à esfera pública e limitadas à individuação. Isso quer dizer que o indivíduo não se constrói e se consolida como um sujeito social, no social e para o social, mas como um indivíduo atomizado por sua individualização. O resultado é uma diversificação infinita de comportamentos absolutamente imprevisíveis, tal qual a expectativa de um pós-cirúrgico lobotômico.
Com a separação entre política e poder, esquarteja-se o corpo social em micropartículas, ou melhor, os neurônios não conseguem captar ou conectar as informações do corpo trazidas ao cérebro. É possível movimentar o braço, mas a voz não ecoa. É possível ouvir, mas o que se ouve não é minimamente compreendido. Às vezes em estado vegetativo, o corpo, deitado eternamente em berço esplêndido, nada ouve, nada vê, nada pensa, nada sente e nada pode tocar. Está eternamente preso ao presente. O passado? O Futuro? Nem as lágrimas que saem de seus olhos é possível aferir se são por suas memórias fragmentadas ou lapsos mnemônicos, ou se, preso ao presente de imobilidade, chora pelo futuro perdido, inatingido, inalcançado, porque o futuro será, tal qual é o agora, imóvel, inerte, insensível.
No entanto, diferentemente do processo cirúrgico da Lobotomia, a lobotomização da sociedade sempre está em curso. É um eterno presente. Paradoxal, não? Não basta 1.972 para mover-lhe o corpo. Está imobilizada pela apatia, pela anestesia diária ou pelo aumento progressivo da dose de morfina. Também não bastou 4.249. Afinal, quanto maior a dor e maior a duração da lobotomia, maior a dose de anestesia ou morfina.
A sociedade lobotomizada não consegue reagir. É possível queimar seus pés, tal qual é feito com a Amazônia, o Pantanal ou o Cerrado, mas as queimaduras não são sentidas. É possível sufocar-lhe com a retirada súbita de oxigênio, tal qual ocorreu em Manaus, mas o máximo que pode ocorrer é mais um dano ao cérebro já fatiado. Por que se importar com a injeção de heroína em suas veias?
Os crimes desviantes em Mariana e Brumadinho nos mostraram que não é necessário se preocupar. Por que não arrancar um de seus olhos, como é arrancado um pai, um filho ou um neto do seio familiar das periferias do Brasil? Afinal, já não faz falta, porque não enxerga. E a avó que faleceu em decorrência da Covid-19? Por que lamentar, se todos vamos morrer um dia, não é? É melhor parar de “mi mi mi”. “Por mais que tentemos, o corpo não está morrendo com a lobotomia.” Eles dizem. “Só está meio, assim, vegetando.”
As consequências do divórcio entre política e poder são claras, mas só recentemente pudemos ter clareza de tamanhos danos. Ao indivíduo, à célula, é dada a responsabilidade por questões que não estão em sua alçada resolver. Ele sofre com as mazelas socialmente construídas – e que caberiam a ela resolver -, mas sobre seus ombros recai seu peso e a aposta de sua solução. No entanto, com a sociedade lobotomizada, as células que configuram seus tecidos são insignificantes. Morrem aos montes todos os dias e no mesmo ritmo nascem novas. São alimentadas graças a ventilação mecânica ou à técnica ECMO, mas estão isoladas e pouco se comunicam com o cérebro. Aguardam vibrantes na expectativa da comunicação, mas morrem antes que sejam ouvidas, vistas ou sequer percebidas. Afinal, o elo está secionado.
A única esperança para a Sociedade Lobotomizada
Sem mais delongas, não há solução para a sociedade lobotomizada sem que esta passe pela esfera pública. É necessário reestabelecer as conexões cerebrais outrora cortadas. Para as ciências médicas ainda não é possível estabelecê-las novamente, somente atenuar suas desastrosas consequências naqueles que ainda sobreviveram a ela. No caso da sociedade lobotomizada, o elo, apesar de cortado, está dado, só está interrompido pelo medo aterrador de uma nova decepção.
A sociedade lobotomizada também é a sociedade da decepção. Lipovetsky (2007, p. 24) já nos deu a deixa: “o que gera decepção não é tanto a falta de conforto pessoal, mas a desagradável sensação de desconforto público e a constatação do conforto alheio”. Onde se constrói esses vínculos? Na esfera pública que se manifesta no espaço público.
Praças, ruas, esquinas, calçadas e, em cidades de maior porte, nos parques. Este é o conjunto de espaços públicos que produzem novos elos capazes de curá-la. A sociedade lobotomizada está atônita, tem medo do encontro, tem pavor dos diferentes, deixou as ruas e praças da cidade para se proteger do outro, do vizinho, do estranho e do dissidente. Constitui-se, no entanto, de uma mixofobia estruturada em circunstâncias vividas individualmente, mas que são generalizadas pela mídia.
Crimes novelizados e espetacularizados no jornal do meio-dia são difíceis de engolir e impossíveis de digerir. Minam a esfera pública e nos sequestram do espaço público. Encastelados por detrás dos muros, negamos a política e renunciamos o exercício do poder. Automaticamente, privatizamos o poder e enjaulamos nossos representantes. Acorrentados aos novos donos do poder e à nossa apatia, eles agem contra o corpo lobotomizado, administrando mais sedativos enquanto privatizam nossos espaços públicos. No futuro, sem eles, não será possível garantir o corpo vivo para que seja reencarnado nele o espírito da política.
Portanto, não basta reverter o quadro do corpo social lobotomizado. É preciso lutar pelo lugar de reconhecimento de sua manutenção: o espaço público. É disso que Bolsonaro e os outros políticos inescrupulosos têm medo: o povo ocupando o espaço público. No espaço público, o cérebro do corpo social lobotomizado se reconstitui. Política e poder se unem novamente e o poder volta a servir à política. Sei que não é tarefa fácil. Pode ser que não ocorra. Mas não será criando mitos e salvadores da pátria que isso ocorrerá. É preciso curar a sociedade lobotomizada.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
LIPOVETSKY, Gilles. A Sociedade da Decepção. Barueri: Manole, 2007.