Descubra a importância de compreender o pensamento de Zygmunt Bauman na contemporaneidade, a partir do seu mundo líquido, com o doutor Pedro Henrique Máximo.
Autor: Pedro Henrique Máximo
Doutor e Mestre em Arquitetura e Urbanismo (UnB). Arquiteto e Urbanista (UEG), Artista Visual (UFG) e Especialista em A Moderna Educação (PUC RS). É Vencedor do Prêmio de Tese Brasília 60 anos da UnB.
A Sociedade de Consumidores é, para nosso amigo Bauman, pautada pela ideologia do consumismo. Nela, o consumo exacerbado, exagerado e supérfluo ganha status de sucesso, felicidade e bem-estar.
Ela é constituída por consumidores ávidos, competentes e engajados no ato do consumo; e Consumidores Falhos, sujeitos incapazes de se adequar à lógica do consumismo. Portanto, na Sociedade de Consumidores, a divisão sociológica está entre aqueles que têm acesso aos padrões de consumo estipulados pelo consumismo; e aqueles que não possuem acesso a ele ou cujo acesso é limitado (BAUMAN, 2010).
Os consumidores ávidos têm uma sensação de que pertencem a uma comunidade, cujo convite de acesso e permanência é sua capacidade de consumo verificada. Portanto, são eles próprios mercadorias a serem consumidas e testadas (BAUMAN, 2008, p. 76).
Essa comunidade artificialmente construída (BAUMAN, 2008, p. 94) não se estrutura por laços humanos fortes o suficiente para superar possíveis saídas abruptas de seus integrantes quando eventualmente se tornam consumidores falhos. Elas testam seus integrantes ao postularem e manipularem novos desafios ao consumo supérfluo, criando novas demandas e desejos.
Por fim, a cidadania, na Sociedade de Consumidores, passa a ser confundida ou diretamente relacionada à capacidade de consumo. Este é seu senso comum e fruto da cultura consumista que dela deriva (BAUMAN, 2008). A divisão social que ela impõe, portanto, indica: 1) aqueles que passam a ter aparente legitimidade de acesso e voz do ponto de vista político à esfera pública; 2) os aparentemente excluídos de acesso e voz a ele.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
BAUMAN, Zygmunt. Vida a Crédito. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
Na sociedade contemporânea o consumismo se coloca como estilo de vida. Diz, portanto, não somente à sua estrutura e modos de vida, mas ao ideal que dele se depreende. Participar do consumismo como prática de vida, ou seja, como consumidor ávido e competente, é sinônimo de bem-estar, sucesso e felicidade pessoal. É sinônimo, do ponto de vista sociológico, de fazer parte de determinados círculos sociais e de estar incluído, ainda que inconsciente, na “ideologia da felicidade pelo consumo” (BAUMAN, 2016, p. 93). O consumismo, diga-se, prática de consumo como fim e que extrapola as necessidades reais, é a lógica de funcionamento da Sociedade de Consumidores.
Consumidores falhos, por outro lado, são aqueles sujeitos que estão excluídos da lógica do consumismo. São, conforme nosso amigo Bauman:
1) os pobres e miseráveis que não conseguem entrar nos circuitos do consumo (BAUMAN, 2005);
2) aqueles que não conseguem se manter nestes circuitos, com entradas pontuais e de curta duração;
3) aqueles que, embora estejam dentro do sistema, não oferecem a ele um consumo satisfatório (BAUMAN, 2008).
Estas três categorias de pessoas vivem na Sociedade de Consumidores, são alimentadas pela mesma fonte do desejo e da sedução daqueles consumidores “decentes” e “normais”, mas ficam às margens. São consideradas pelo sistema como incapazes, insuficientes, incapacitadas e inabilitadas (BAUMAN, 1998; 2008).
Sabe aquele cartão de crédito que não foi autorizado pelo banco? Aquela viagem dos sonhos não realizada que mais uma vez terá que ser adiada? Enfim.
A capacidade de consumo dos Consumidores Falhos é considerada pelo sistema como insatisfatória. O acesso ao sistema por parte deles é limitada ou negada. Como consequência, do ponto de vista sociológico, os Consumidores Falhos também têm acesso limitado ou negado aos debates públicos e à esfera pública. Sofrem com a indiferença, a discriminação ou outros tipos de violência por não conseguirem acessar os padrões de consumo da Sociedade de Consumidores.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
BAUMAN, Zygmunt, BORDONI, Carlo. Estado de Crise. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
O mal-estar da pós-modernidade, obra de Zygmunt Bauman de 1997, faz referência direta ao clássico de Sigmund Freud, O mal-estar a Cultura, de 1930. Neste texto, Bauman interessou-se pela análise e crítica que Freud fez à cultura, que em síntese apontava que na civilização renunciamos a liberdade nome da segurança, da certeza e da proteção (sicherheit). Esta era a fonte de nosso mal-estar.
No entanto, em O mal-estar da pós-modernidade, Bauman apontou uma virada da razão de nosso mal-estar: a liberdade. Renunciamos a segurança em nome da liberdade, cujos efeitos colaterais são a incerteza, a ansiedade e a angústia (unsicherheit), que passaram a ser nossa fonte de mal-estar.
Bauman e Freud: aproximações
À época de O mal-estar na Cultura Freud, com 74 anos, vivia na Áustria e atuou como um intérprete de seu contexto histórico-geográfico: o entreguerras na Europa Central com o acirramento das tensões políticas; da repressão à psicanálise; da ascensão do nazifascismo e do agravamento do antissemitismo, do qual sofreu.
Bauman tinha 5 anos quando O mal-estar a Cultura foi publicadoe vivia na Polônia, nação vizinha.Era, tal qual Freud, de origem judaica. Em função do contexto, seus destinos seriam compartilhados: ambos se exilaram; Freud, na Inglaterra, quando da anexação da Áustria à Alemanha nazista em 1938 (a Anschluss); e Bauman, na União Soviética, após a invasão alemã à Polônia em 1939. Freud faleceu um ano após seu exílio. Bauman, 77 anos depois. Ambos na Inglaterra.
Liberdade e Segurança
A relação de Bauman com Freud não se limita a O mal-estar na Pós-modernidade. Bauman passa a sustentar a tese de que “o progresso histórico faz pensar mais num pêndulo que numa linha reta” (BAUMAN, 2017, 19). Nos polos do movimento do pêndulo estão a liberdade e a segurança, e as sociedades migram de um ao outro de tempos em tempos em busca da felicidade, tentando encontrá-la.
Outro ponto importante que Bauman se apoiará na obra Freudiana são as fontes do medo humano: “o poder superior da natureza, a fragilidade do nosso próprio corpo e a deficiência das disposições que regulam os relacionamentos humanos” (FREUD, 2013, p. 80). A terceira fonte advém da vida em sociedade e que, tanto para Freud quanto para Bauman, será uma fonte difícil de resolução.
Bauman a analisou em diversos livros: Vida Líquida (2005); Tempos Líquidos (2007); Medo Líquido (2008); Confiança e Medo na Cidade (2009); A Arte da Vida (2009); Cegueira Moral (2014); Vigilância Líquida (2013); O Retorno do Pêndulo (2017); Mal líquido (2019).
Estes livros nos dão uma boa introdução da relação teórica entre Bauman e Freud.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998
BAUMAN, Zygmunt. O retorno do Pêndulo. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na Cultura. Porto Alegre: L&PM, 2013.
Como os bons vinhos, os melhores livros são aqueles que envelhecem bem. Eles transcendem o tempo da escrita para os tempos vindouros e, ainda que datados, carregam uma mensagem potente para a posteridade. Um bom livro passa pelo crivo dos críticos. Não é imune a julgamentos. Mas, em razão de seu conteúdo, sobrevive e resiste às armadilhas que o tempo histórico nos impõe em suas transformações.
Famoso globalmente por Modernidade Líquida, Zygmunt Bauman, falecido em 2017 aos 91 anos, nos deixou um imenso acervo sociológico e filosófico como herança. Sua fase “líquida”, mais recente, é uma fratura poderosa nas muralhas que separam universidade e sociedade. É um óbvio aceno aos mais jovens. É um convite com linguagem fácil aos mundos possíveis revelados pela sociologia. E, principalmente, um conjunto de cartas endereçadas a amigos distantes, desconhecidos e ainda por conquistar.
Mesmo depois de sua morte, Bauman continua a fazer amizades, companhias fiéis na longa jornada da compreensão do mundo. Isso graças a seus livros que envelheceram bem e resistiram às armadilhas do tempo histórico. É possível discordar de seus pensamentos, contrapor seus argumentos, levantar hipóteses outras e negar veementemente que estamos vivendo no mundo líquido-moderno. Mas, não é possível afirmar que Bauman e suas angústias traduzidas em textos não sejam uma boa companhia.
Embora sua fase “líquida” de Bauman esteja sempre em destaque, uma de suas obras que melhor envelheceu foi Modernidade e Holocausto, de 1989. Vencedora do Prêmio Amalfi como melhor livro de sociologia da Europa naquele ano, Modernidade e Holocausto nos traz uma mensagem potente que devemos, diante das adversidades impostas pela Covid-19, resgatar.
Para Bauman, após o Holocausto deveríamos criar um conjunto de mecanismos imunológicos à cegueira moral (para prevenção e defesa) imposta pela racionalidade alienante e burocracia estatal modernas, que naquele contexto era circunstanciada pelo nazifascismo, mas que ainda não estaria extirpada. Somente este conjunto de mecanismos imunológicos poderia inviabilizar que horrores análogos ao Holocausto se repetissem em outras localidades, contra outros povos e etnias, e, obviamente, em outros formatos respaldados por outras justificativas e conteúdo.
Para chegar a tal conclusão, nosso velho amigo Bauman estabeleceu por hipótese que o Holocausto não foi uma imensa pedra no caminho reto da modernidade, não foi um passo para trás no processo evolutivo da sociedade ocidental ou muito menos um surto irracional da humanidade, característico das sociedades pré-modernas. Outra importante consideração é o fato de que o Holocausto não foi somente uma “tragédia judaica”.
Essas duas visões aparentemente assustadoras são reconfortantes para a atmosfera social universal, pois guardam a promessa de uma autocura rápida. Colocar o Holocausto como um fenômeno bilateral entre alemães e judeus nos exime de culpa e responsabilidade sobre o terror ali produzido. No entanto, esse distanciamento tácito não passa de uma perigosa cegueira pós-Holocausto potencialmente suicida.
A primeira, guarda por princípio a negação de que o Holocausto nasceu, foi planejado e praticado no auge da civilização moderna, e era, portanto, um problema a ser enfrentado por esta civilização. A segunda, direciona os horrores do nazismo a um grupo marcado para morrer, mas encobre o fato de que 6 milhões de judeus foram aniquilados a mando de Hitler, mas o total de assassinados ultrapassou a marca de 20 milhões.
Como explicar tais números? Quem ousaria fazê-lo a fim de subtrair do curso da autocura social as duas visões ao mesmo tempo assustadoras e reconfortantes?
Parte considerável da população brasileira tem optado por seguir a lógica da rápida autocura.
Uma parte compreende Bolsonaro e sua gestão atrapalhada – mas ao mesmo tempo planejada -, como uma loucura, uma pedra gigante no curso da nossa história recente que, se removida pelo Impeachment ou nas eleições de 2022 tudo voltará ao normal, tudo será como era antes, lindo e belo.
Uma segunda parte se tranquiliza e se orgulha ao saber que não digitou 17 nas urnas e confirmou. Diante do espelho, no entanto, não enxerga nada além do “ele não” e, ainda que em sofrimento, opta por aguardar o tempo passar.
Uma terceira parte, mais aguerrida e cega, se convence que mais de meio milhão de mortos se deu em decorrência da avassaladora presença do coronavírus em nosso território e que não havia nada a ser feito. No entanto, caiu na pegadinha do “não serão mais que 800 mortos”, “meu histórico de atleta”, “a pandemia não durará até julho de 2020”, e ainda continua a gargalhar quando o Presidente diz que não é coveiro ou imita uma pessoa sem ar com Covid-19.
As três posturas não ajudam a enfrentar o problema e a condição sociopolítica que repousa sobre nossos ombros. A primeira opta pelo caminho mais fácil. Aquilo que aparentemente está fora do normal é reconhecido como loucura. No entanto, os loucos não pagam pelo mal que fizeram como os sujeitos sãos. Tampouco removida a pedra do curso da história recente tudo voltará ao normal. Jamais voltaremos ao normal! As feridas abertas demorarão a fechar, e ainda que fechem, as cicatrizes ainda estarão ali. Além do mais, o antigo normal era péssimo e pré-condição para estarmos onde estamos; mas agora o louvamos, porque a situação atual é indizível.
A questão central não é Bolsonaro, mas a ideologia que ele incorpora e que agora está amplamente disseminada e distribuída como pólvora pelo território nacional. É preciso desarmá-la! A segunda é covarde. Não é preciso argumentar mais que isso! A terceira, sintoma forte da ideologia bolsonarista, é consequência direta daquilo que Bauman alertou (mas não somente ele) sobre os perigos que a ausência de mecanismos preventivos poderia trazer ao corpo social. Nega veementemente o problema central, foge de suas raízes, obscurece o debate e ri da maior piada de mal gosto já contada.
Nosso velho amigo Bauman estava certo! Primeiro, porque aliados ou não, o problema não é circunstanciado ou contingenciado a um grupo, mas geral, generalizado, humano e social. Segundo, porque a ausência de mecanismos imunológicos é pré-condição para uma avassaladora presença de Vírus e vírus mortais. Terceiro, porque se não encontrarmos as razões para estarmos onde estamos, qualquer caminho serve, qualquer direção nos parecerá viável, inclusive o retorno ao passado, o lindo e belo normal, que hoje propagam os saudosos como o paraíso perdido que devemos reencontrar.
Explicações simplórias sempre nos apresentarão uma versão reduzida do problema e, consequentemente, um diagnóstico equivocado das origens desse problema. Bauman, ao analisar o Holocausto como uma face da modernidade antes linda e bela, nos deixou uma potente mensagem que provavelmente seguirá sendo difundida pelas próximas décadas ou séculos. Como um bom vinho, Modernidade e Holocausto envelheceu bem! E Bauman, nosso velho e saudoso amigo, se mostra mais útil e necessário do que nunca!
A sociedade lobotomizada é um pequeno ensaio sobre os reflexos sociais da pandemia no Brasil, especialmente no que se refere às ações políticas em sua gestão.
Quando o Brasil bateu o recorde de número de mortes alcançando 1.972 decidi escrever este texto. Era 09 de março, dia do aniversário de 3 meses doWeColetivo. A angústia trazida à equipe por este número não permitiu que sequer mencionássemos a conquista. Afinal, estruturar, manter e expandir este projeto em tempos tão duros não tem sido tarefa fácil. Talvez, neste dia, tivemos uma noção clara da complexa lida que nos impusemos ao criar o We como uma multiplataforma de comunicação digital. Estes e outros dados que escancaram a absoluta tragédia brasileira passaram a fazer parte do nosso cotidiano, pois não lidamos com eles como espectadores. Os dados e números sobre tal realidade pulsam diariamente diante dos nossos olhos e ferem nossos espíritos, tal qual um punhal perfuraria nossas carnes.
O tempo e a dor não me permitiram, no entanto, proceder com a escrita naqueles dias. Era necessário, além de um mínimo de sanidade, pesquisa. O insight que tive precisaria ser verificado para não levar aos meus amigos e amigas, próximos e distantes, uma elucubração vazia e descolada da realidade. Hoje, infelizmente, consigo fazer claramente a relação que naquele momento ainda era pura ideação. Este texto é um primeiro esboço e quero compartilhá-lo com vocês.
Lobotomia generalizada
Há alguns meses assisti a série Ratched. Dentre muitos temas ali tratados, o principal, ao menos para mim, foi a Lobotomia. A Lobotomia foi um tipo de intervenção cirúrgica cerebral que tinha como técnica desligar os lobos frontais, direito e esquerdo, de todo o encéfalo. Objetivava curar doenças mentais, especialmente a esquizofrenia, e modificar o comportamento de pacientes. Era compreendida como psicocirurgia e era também chamada de leucotomia.
Lobotomia, para qualquer arquiteto minimamente atualizado, é tema familiar. O arquiteto holandês Rem Koolhaas, em Delirious New York (1978), tratou deste conceito ao ler as torres da cidade, em especial o edifício Athetic Club, no qual notou uma ruptura com um dos dogmas do Movimento Moderno Form follows Function ou Forma segue a função, concebido pelo “pai” dos arranha-céus de Chicago, Louis Sullivan, em seu ensaio de 1896, The tall office building artistically considered. Na arquitetura metropolitana de Nova Iorque, na torre, era possível encontrar uma variação, diversificação e multiplicidade de usos – às vezes incompatíveis entre si – em pavimentos diferentes ou nos próprios pavimentos, que não era possível ser identificado ou compreendido quando olhada por fora.
A lobotomia para a arquitetura foi profícua, diferente para o caso das ciências médicas, mas gerou o mesmo efeito: uma diversidade incomensurável de resultados. Para a arquitetura, a cisão entre a fachada e as funções internas permitiram verdadeiros espetáculos urbanos – em sentido positivo e negativo – como no caso do Museu Guggenheim de Bilbao, o Centro Cultural Georges Pompidou, em Paris, ou a sede da CCTV em Pequim, na China.
Para as cirurgias cerebrais os resultados foram imprevisíveis, danosos e absolutamente variados. Além da morte, muitos pacientes perderam a coordenação motora, tinham suas falas perdidas ou amansadas, tal qual seu comportamento; reflexões lógicas e corriqueiras não eram mais possíveis ou os pacientes se tornavam dóceis demais, fáceis de serem manipulados.
Direcionada inicialmente para casos de esquizofrenia, a Lobotomia se tornou o protocolo também “adequado” para homossexuais, depressivos e pessoas agitadas, explosivas, nervosas ou mesmo para adolescentes rebeldes. Por cerca de 45 anos, tal procedimento era realizado em cerca de 5 minutos, nas salas de cirurgia ou em quartos de hotel ou residências, em diversos lugares do mundo, sem anuência da família ou do próprio paciente. Os resultados, notadamente mais “adequados” às normas sociais de comportamento, foram aceitos como normais pelos familiares ou como efeitos colaterais do tratamento pela classe médica. Os resultados, mais uma vez, admitiam processos de zumbização das pessoas cujos comportamentos eram considerados inadequados.
Práticas sociais da Lobotomia
Talvez o principal motivo que explique o processo de zumbização social seja o divórcio e o medo da separação definitiva entre a poder e a política, conforme nos apontou Zygmunt Bauman em Globalização: consequências humanas. A política como exercício do poder cada vez minorada por dogmas frívolos, seja no corpo social ou de seus representantes, tem produzido diversas anomalias sociais e uma cultura própria: processos de subjetivação alheios à esfera pública e limitadas à individuação. Isso quer dizer que o indivíduo não se constrói e se consolida como um sujeito social, no social e para o social, mas como um indivíduo atomizado por sua individualização. O resultado é uma diversificação infinita de comportamentos absolutamente imprevisíveis, tal qual a expectativa de um pós-cirúrgico lobotômico.
Com a separação entre política e poder, esquarteja-se o corpo social em micropartículas, ou melhor, os neurônios não conseguem captar ou conectar as informações do corpo trazidas ao cérebro. É possível movimentar o braço, mas a voz não ecoa. É possível ouvir, mas o que se ouve não é minimamente compreendido. Às vezes em estado vegetativo, o corpo, deitado eternamente em berço esplêndido, nada ouve, nada vê, nada pensa, nada sente e nada pode tocar. Está eternamente preso ao presente. O passado? O Futuro? Nem as lágrimas que saem de seus olhos é possível aferir se são por suas memórias fragmentadas ou lapsos mnemônicos, ou se, preso ao presente de imobilidade, chora pelo futuro perdido, inatingido, inalcançado, porque o futuro será, tal qual é o agora, imóvel, inerte, insensível.
No entanto, diferentemente do processo cirúrgico da Lobotomia, a lobotomização da sociedade sempre está em curso. É um eterno presente. Paradoxal, não? Não basta 1.972 para mover-lhe o corpo. Está imobilizada pela apatia, pela anestesia diária ou pelo aumento progressivo da dose de morfina. Também não bastou 4.249. Afinal, quanto maior a dor e maior a duração da lobotomia, maior a dose de anestesia ou morfina.
A sociedade lobotomizada não consegue reagir. É possível queimar seus pés, tal qual é feito com a Amazônia, o Pantanal ou o Cerrado, mas as queimaduras não são sentidas. É possível sufocar-lhe com a retirada súbita de oxigênio, tal qual ocorreu em Manaus, mas o máximo que pode ocorrer é mais um dano ao cérebro já fatiado. Por que se importar com a injeção de heroína em suas veias?
Os crimes desviantes em Mariana e Brumadinho nos mostraram que não é necessário se preocupar. Por que não arrancar um de seus olhos, como é arrancado um pai, um filho ou um neto do seio familiar das periferias do Brasil? Afinal, já não faz falta, porque não enxerga. E a avó que faleceu em decorrência da Covid-19? Por que lamentar, se todos vamos morrer um dia, não é? É melhor parar de “mi mi mi”. “Por mais que tentemos, o corpo não está morrendo com a lobotomia.” Eles dizem. “Só está meio, assim, vegetando.”
As consequências do divórcio entre política e poder são claras, mas só recentemente pudemos ter clareza de tamanhos danos. Ao indivíduo, à célula, é dada a responsabilidade por questões que não estão em sua alçada resolver. Ele sofre com as mazelas socialmente construídas – e que caberiam a ela resolver -, mas sobre seus ombros recai seu peso e a aposta de sua solução. No entanto, com a sociedade lobotomizada, as células que configuram seus tecidos são insignificantes. Morrem aos montes todos os dias e no mesmo ritmo nascem novas. São alimentadas graças a ventilação mecânica ou à técnica ECMO, mas estão isoladas e pouco se comunicam com o cérebro. Aguardam vibrantes na expectativa da comunicação, mas morrem antes que sejam ouvidas, vistas ou sequer percebidas. Afinal, o elo está secionado.
A única esperança para a Sociedade Lobotomizada
Sem mais delongas, não há solução para a sociedade lobotomizada sem que esta passe pela esfera pública. É necessário reestabelecer as conexões cerebrais outrora cortadas. Para as ciências médicas ainda não é possível estabelecê-las novamente, somente atenuar suas desastrosas consequências naqueles que ainda sobreviveram a ela. No caso da sociedade lobotomizada, o elo, apesar de cortado, está dado, só está interrompido pelo medo aterrador de uma nova decepção.
A sociedade lobotomizada também é a sociedade da decepção. Lipovetsky (2007, p. 24) já nos deu a deixa: “o que gera decepção não é tanto a falta de conforto pessoal, mas a desagradável sensação de desconforto público e a constatação do conforto alheio”. Onde se constrói esses vínculos? Na esfera pública que se manifesta no espaço público.
Praças, ruas, esquinas, calçadas e, em cidades de maior porte, nos parques. Este é o conjunto de espaços públicos que produzem novos elos capazes de curá-la. A sociedade lobotomizada está atônita, tem medo do encontro, tem pavor dos diferentes, deixou as ruas e praças da cidade para se proteger do outro, do vizinho, do estranho e do dissidente. Constitui-se, no entanto, de uma mixofobia estruturada em circunstâncias vividas individualmente, mas que são generalizadas pela mídia.
Crimes novelizados e espetacularizados no jornal do meio-dia são difíceis de engolir e impossíveis de digerir. Minam a esfera pública e nos sequestram do espaço público. Encastelados por detrás dos muros, negamos a política e renunciamos o exercício do poder. Automaticamente, privatizamos o poder e enjaulamos nossos representantes. Acorrentados aos novos donos do poder e à nossa apatia, eles agem contra o corpo lobotomizado, administrando mais sedativos enquanto privatizam nossos espaços públicos. No futuro, sem eles, não será possível garantir o corpo vivo para que seja reencarnado nele o espírito da política.
Portanto, não basta reverter o quadro do corpo social lobotomizado. É preciso lutar pelo lugar de reconhecimento de sua manutenção: o espaço público. É disso que Bolsonaro e os outros políticos inescrupulosos têm medo: o povo ocupando o espaço público. No espaço público, o cérebro do corpo social lobotomizado se reconstitui. Política e poder se unem novamente e o poder volta a servir à política. Sei que não é tarefa fácil. Pode ser que não ocorra. Mas não será criando mitos e salvadores da pátria que isso ocorrerá. É preciso curar a sociedade lobotomizada.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
LIPOVETSKY, Gilles. A Sociedade da Decepção. Barueri: Manole, 2007.
A cultura na ótica de Zygmunt Bauman foi o tema de um encontro do Grupo de Pesquisa em Geografia Cultural da Universidade Federal de Goiás, ocorrido em 28 de agosto de 2021. Este texto é derivado deste encontro.
O convite feito a mim para compartilhar com vocês minhas pesquisas sobre o sociólogo polonês Zygmunt Bauman foi uma oportunidade ímpar de tentar estabelecer uma síntese ou um conjunto de sínteses. Desde 2019 tenho me debruçado sobre este autor numa pesquisa que desenvolvo na PUC Goiás. Inicialmente, minha intenção era agir sobre seus escritos como uma espécie de catador e um colecionador, na qual eu coletaria e organizaria temas, debates e conceitos que pudessem contribuir com o campo dos Estudos Urbanos. Agora, depois de montar o primeiro quadro de uma coleção, a pesquisa se desdobrou em um movimento mais amplo sobre a relação entre vida, obra e Estudos Urbanos.
Zygmunt Bauman é um dos autores mais conhecidos na contemporaneidade. Todos e todas já ouvimos falar, lemos alguns de seus livros e ensaios ou interagimos com algum meme sobre ele na internet. No entanto, no Brasil, sua grande fama não é proporcional ao quanto é lido. Tampouco o que é dito sobre sua obra revela parte considerável do que produziu. Pelo contrário, gera sombra sobre temas e assuntos sobre os quais ele se debruçou por décadas. Ainda, a faísca acesa pela disseminação indiscriminada de parte de seus conteúdos causa desconfiança em alguns nichos da academia brasileira, assim como causaram as obras de Nietzsche, Foucault ou, para trazer um autor brasileiro e de nosso amplo conhecimento, Milton Santos.
Assim, tenho percebido que estudar um autor considerado pop é como uma faca de dois gumes. Para a academia, sinal de alerta e desconfiança. Para a sociedade e atores do cotidiano com quem tenho dialogado, sinal de interesse e necessidade. Sinceramente, sigo confiante no sinal dado pela segunda e tento conciliar interesses com o sinal dado pela primeira. Afinal, o papel da academia é devolver para a sociedade conhecimento que adquirimos sobre o mundo e sobre ela própria. É estabelecer um diálogo aberto e honesto a fim de ampliar a autoconsciência de ambas, academia e sociedade.
Além do mais, em que lugar estamos, nós, academia, que não admitimos que um conhecimento possa ser entendido por uma ampla maioria das pessoas ou que seus temas possam ser interessantes para além dos circuitos intelectuais? E mais, que temas característicos da vida cotidiana não possam estar sob os holofotes dos interesses da academia? Acredito que em algum momento, vocês, geógrafos e geógrafas culturais tenham passado por isso. Nos ambientes e circuitos disciplinares da arquitetura tal fissura é aguda e muitos tentam construir pontes. Posso me considerar um desses e foi com o interesse em entender estes conflitos que me interessei por sua vida, obra e trajetória profissional.
Bauman em diáspora e diante das contradições da modernidade
Bauman nasceu em Poznan em 1925. Era de família judia que transitava entre as classes trabalhadora e média numa das cidades mais antissemitas da Polônia. Quando jovem, sofreu com o antissemitismo na escola e na vizinhança até dia 02/09/1939 quando fugiu dos nazistas que já bombardeavam sua cidade natal. Bauman tinha 13 anos.
Em sua epopeia, os Bauman fugiram sob ataques aéreos dos nazistas para a União Soviética. Instalaram-se em Molodechno, na Bielorrússia, e após 18 meses, em Shakhunya, na Rússia, após o avanço das tropas nazistas sobre o território soviético em 1941. Aos 17 anos ingressou no curso de Física na Universidade de Gorki e foi obrigado a deixar a cidade por sua nacionalidade, indo para o norte da Rússia, para a pequena cidade de Vakhtan, no meio da densa floresta na região de Ninji.
Quando completou 18 anos foi convocado para o ambiente de guerra. Trabalhou inicialmente como controlador de tráfego em Moscou e posteriormente na formação militar do Exército Polonês em Sumy, na Ucrânia. De lá integraram o front, lutaram em Olyka, na Ucrânia; libertaram, juntamente com o Exército Vermelho, Chelm e Lublin, na Polônia. Ali Bauman se deparou com o Campo de Concentração de Majdanek e suas pilhas de corpos em decomposição e “reciclagem” inacabada. Do outro lado do Vístula, viu Varsóvia ser destruída enquanto aguardava as ordens do Kremlin para o avanço das tropas, ordens essas que não chegaram. Já em 1945, os Exércitos polonês e vermelho avançaram sobre os nazistas, derrubaram-nos na Muralha Pomerana e venceram a batalha em Kolobrzeg. Nesta batalha, Bauman foi alvejado com um tiro na clavícula e foi afastado da Guerra até se recuperar. Por fim, chegou em maio de 1945 a Berlim um dia antes do fim da guerra e lutou contra os nazistas em sua periferia.
Na sequência, Bauman integrou a polêmica KBW, responsável por implantar o novo regime na Polônia. Formou-se em Filosofia na Academia e posteriormente, fez mestrado e doutorado em Sociologia, no Departamento de Filosofia da Universidade de Varsóvia. Sua dissertação de mestrado defendida em 25 de julho de 1954 foi intitulada “Abordagem metodológica e histórica da Escola de Baden e sua influência na historiografia polonesa” e foi orientada por Adam Schaff. Em sua tese de doutorado intitulada “A doutrina política do Partido Trabalhista britânico” investigou os vestígios do socialismo nos discursos e práticas do Partido Trabalhista inglês sob orientação de Julian Hochfeld. A defesa de sua tese ocorreu em 16 de maio de 1956.
Para tal, é necessário fazer um breve passeio no tempo das ideias e apaziguar alguns conflitos que possam vir a partir da minha fala. Primeiramente, a pecha de que Bauman é pós-moderno, acreditava na pós-modernidade ou defendia seus pressupostos não passa de uma má interpretação. Bauman utilizou tal termo de meados da década de 1980 a meados da década de 1990, primeiro, para não entrar em conflito com a compreensão que existia sobre a modernidade e, segundo, por não existir, até o momento, nome suficientemente claro para designar as mudanças ocorridas no pós-holocausto.
Para Bauman, a ideia ou o conceito de cultura e a cultura como fato social e objetivo não são a mesma coisa. Enquanto o conceito de cultura foi instável e estamental ao longo de toda a história moderna, a cultura é, em síntese, a práxis humana crítica e crítica porque autorreferenciada, autoconsciente e autodeterminada.
O conceito de cultura, muitas vezes distante da prática da cultura, foi instrumento de distinção, modelagem, manipulação e a desculpa de privilegiados para impor certas concepções de ordem sobre o território. Em síntese, como conceito, a cultura foi utilizada para perpetuar as relações sociais de poder e deixar as estratificações sociais mais claras para assim serem geridas e aprimoradas.
Em Legisladores e Intérpretes, Bauman (2010 [1987], p. 91) analisou o início do que nomeou de “cruzada cultural” na França, que eliminou a cultura popular urbana e rural, acusadas de perpetuar costumes “falsos”, em meados do século 17; corruptoras da “razão”, no final deste século; ou, já em meados do século 18, de não se adequarem às normas socialmente consentidas e legisladas. Notemos que este processo foi, nestes dois séculos, se tornando institucionalizado a partir de normas em tese claras. Em Modernidade e Ambivalência, Bauman considerou que a “modernização era também uma cruzada cultural” (1999, p. 124), iniciada ali no século 17.
Embora com justificativas distintas, a repressão à prática de sociabilidades que não aderiam ao nascente modelo de cultura persistia. À tradição deveria ser negada a autoridade. Limite, restrição ou proibição era traço de toda e qualquer cultura, sua súmula universal, e isso Bauman aprendeu com Lévi-Strauss e Freud.
O conceito de cultura
No entanto, a cultura moderna nascia diferente de seu traço essencial. Enquanto as restrições eram tradicionalmente constituídas e lentamente reformuladas, na sociedade moderna elas eram legisladas.
O conceito de cultura surgiu com a necessidade de distinção entre a natureza ou “aquilo que é dado” e a capacidade de autodeterminação e autorreferência humanas. A diferença entre cultura e natureza não só precisaria ser demarcada e destacada. O domínio da primeira sobre a segunda deveria ser estabelecido. Inclusive a repressão à natureza humana e suas paixões animalescas.
Era necessário um “contrato social” que impusesse limites à autodeterminação e “legisladores” que pudessem desenhar um projeto de ordem social. A autodeterminação, a benção da modernidade, passaria a ser também sua maior maldição. A autodeterminação era uma ameaça latente, tendo em vista que não poderia se prever seu destino e evitar suas consequências potencialmente disruptivas.
Sobre isso Bauman disse:
Ordem é o oposto de aleatoriedade, significa estreitamento do leque de possibilidades […]. Construir a ordem significa, em outras palavras, manipular as probabilidades dos eventos.
(2012, p. 19)
“A ideia de cultura foi uma invenção histórica instigada pelo impulso de assimilar, do ponto de vista intelectual, uma experiência inegavelmente histórica” (2012, p. 19). Portanto, foi no século 18 que ficou claro que o tempo não era um dado natural, mas atributo humano e social. Como pretensão, a distância entre o natural e o cultural foi regulamentada e o tempo desvinculado de sua continuidade.
O futuro como tempo da cultura moderna
A rejeição da sujeição da cultura à natureza criou uma cunha temporal, na qual o futuro foi desacoplado do passado marcado pela ignorância dessa consciência. O futuro seria inteiramente fabricado pelo homem e sua história seria escrita pelas consequências de sua autodeterminação. Era necessário “colonizar o futuro” (2010, p. 155). Assim, para Bauman, “como forma de vida, a modernidade torna-se possível assumindo uma tarefa impossível” (1999, p. 17).
Como um reforço às ideias de nosso amigo Bauman, nas artes ficou claro quando mimese foi substituída pela poética e o belo foi soterrado pela noção de estética. Poética significa criação e invenção, enquanto mimese significa cópia. O belo era a representação do ideal e da perfeição da natureza, enquanto estética anunciava a faculdade humana do sentir. Esta substituição ocorreu também neste século.
Assim, um grupo seleto de legisladores, cientes do encontro do homem com sua autoconsciência, estabeleceu limites à liberdade da autodeterminação. Estratificou a cultura, estabeleceu normas e regras, livrou o homem de seus dilemas morais regulamentando-os em códigos de conduta, a fim de evitar o temido teste da autodeterminação: “o que os homens podem fazer, se levam até o limite suas faculdades cognitivas, sua capacidade lógica e sua determinação” (2012, p. 14)?
Este teste, senão evitado, deveria ser adiado até que fossem inventariadas, catalogadas, classificadas e por fim ordenadas todas as possibilidades das capacidades humanas. Bauman insinuou que a modernidade nasceu não da ordem como destino, mas da possibilidade entre a ordem e caos, os irmãos gêmeos modernos. Para ele não era necessária a adoção da ordem como princípio de ação caso não existisse seu oposto. Da ambição pela ordem e pelo poder classificatório da modernidade surgiu a ambivalência, o seu subproduto.
O Estado jardineiro
Assim, a ação planificadora da filosofia legisladora procurou regular as possibilidades da cultura. Afinal, se é possível a autodeterminação como um fato objetivo da natureza humana, por que não direcioná-la para o bem comum da ordem universal? Por que não conduzi-la para livrar os homens fracos da sedução de suas paixões?
Esses questionamentos irônicos sintetizam dois espectros da visão dos modernos sobre a realidade: aqueles que teorizaram sobre a cultura e a civilização pressupunham ser seus porta-vozes e se consideravam agentes de notório saber; e aqueles iletrados, a ampla maioria da sociedade, precisariam ser fortemente contingenciados e direcionados.
Em seus estudos, Bauman notou que num dado contexto cultural, não é possível que todos os membros gozem dos mesmos graus de liberdade de autodeterminação. Tal liberdade, adquirida ou atribuída sem ser construída coletivamente e fortemente negociada, não passa de uma prisão, uma anomalia ou uma ameaça. Suas consequências são, em geral, o conflito, a negação, a assimilação ou a dissimilação. Essa, sem sombra de dúvidas, é a maior ambiguidade da promessa iluminista, do liberalismo e do neoliberalismo. Não é possível, em ambiente social, a liberdade sem que essa seja negociada. Na modernidade, no entanto, a liberdade foi “empregada a serviço de sua própria anulação” (2012, p. 19).
No entanto, a separação entre cultura e natureza, no século 19, parece incorrer numa contradição. A cultura foi naturalizada, quando a filosofia positivista tornou-se a razão do desenvolvimento social e humano. Interessante é que este processo se deu pelo agravamento das contingências trazidas pela administração do Projeto Moderno, pelas ciências positivas e a consequente redução da cultura a uma alienação tecnológica e objetiva. Nas palavras de Bauman, o positivismo “reflete fielmente a realidade do mundo alienado dos seres humanos” e criou um “expediente de transformar a melhor parte do sujeito em objeto de controle autoritário e tornar o resto irrelevante e sem significado” (2012, p. 288). E Bauman nos lembrou que o que destituiu a filosofia positivista de sua entronização não foram as filosofias antipositivistas, mas as revoltas populares contra as realidades sociais em que se encontravam, onde transformou-se “a reflexão, o exame, a comprovação e a vigilância em luxo sem os quais se pode passar” (2012, p. 11).
A cultura como possibilidade da poética e da estética cristalizou-se num conjunto de códigos restritivos amplamente diversificados em cada Estado nacional implantado. Por outro lado, somente uma pequena elite burguesa pôde disfrutar da liberdade de autodeterminação.
A ordem perpetrou ao homem moderno o sonho da pureza, a sua máxima expressão. A pureza estaria livre da ação classificadora, legisladora e planificadora. Portanto, levaria a cultura, paradoxalmente, a uma condição natural. A assimilação cultural era um caminho intermediário adquirido pelo poder classificatório rumo a ela. Mas a classificação também era o caminho da ambivalência. A classificação, ao passo que hierarquizava e nomeava, deixava clara a imprecisão da capacidade dar ordem às coisas. Nós, pesquisadores, lidamos incessantemente com essa herança dos idos da modernidade.
A ambivalência, esse sentimento dúbio, solicitava novas tecnologias de classificação e novos poderes para administrar o que era classificado. “os dois fatores combinaram-se dos tempos modernos uma era de guerra particularmente dolorosa e implacável contra a ambivalência” (1999, p. 11).
No entanto, é chegado o momento do grande teste outrora adiado: o holocausto. Eis provavelmente a tese mais poderosa de Bauman: o holocausto não foi um passo para trás na história, uma pedra no caminho da modernidade ou o surto súbito de um comportamento latente da mentalidade pré-moderna. Também não foi uma relação circunscrita entre nazistas e judeus. Ao contrário, o holocausto deixou claro ou revelou o “escândalo da ambivalência” do espírito moderno.
Como nos alertou Bauman:
o Holocausto nasceu e foi executado na nossa sociedade moderna e racional, em nosso alto estágio de civilização e no auge do desenvolvimento humano, e por essa razão é um problema dessa sociedade, civilização e cultura.
(1998, p. 12)
Ilusões da cultura moderna
As ambivalências encrostadas na modernidade foram as principais causas da consciência de sua ilusão. Como vimos e como Bauman nos alertou, as tentativas de contingenciá-la ou aniquilá-la não surtiram os efeitos esperados. Tampouco todo inventário da cultura moderna já realizado pôde antecipar a possibilidade do evento do Holocausto.
A suspeita de que não somente a tecnologia produziu a destruição da Guerra e o Holocausto colocou em suspeição a própria modernidade. Imediatamente seus pressupostos foram lançados ao tempo passado. A promessa do novo envelheceu-se no conceito de cristalização, amplamente difundido em língua anglo-saxã durante as décadas de 1950 e 1960. O conceito de cristalização foi, senão o próprio fundamento da pós-modernidade, o seu prelúdio.
Mas tal suspeita ficou em silêncio, alertou-nos Bauman. O sonho da universalidade dos princípios e da cultura modernos não poderiam ser maculados por suas ambivalências latentes, embora não assumidas.
A rápida saída foi o anúncio do fim da modernidade, o último suspiro do progresso em seu sentido teleológico. Mirar o futuro mais uma vez para livrar de sua trajetória a autocrítica. Como disse-nos Bauman “o progresso, é uma memória do desespero passado e uma determinação de escapar do desespero presente”.
Tolerância e diversidade
No entanto, a desilusão não eliminou as ambivalências. Tolerância e diversidade, as súmulas pós-modernas, não são menos ambivalentes que as noções e igualdade e liberdade. Pelo contrário, encobrem a possibilidade de que novos eventos similares ao Holocausto surjam em outras localidades, contra outros povos e em escalas diferentes. Em Modernidade e Ambivalência, inclusive, Bauman ironizou, “Pós-modernidade ou vivendo com a ambivalência”, e salientou “a pós-modernidade é uma chance da modernidade”, na qual foi liberada a hybris moderna (1999, p. 271).
A tolerância, forçada ou intencional, é dada por uma contingência anunciada e ainda legislada diante do diverso. Afinal, era necessário um pacto mínimo de partilha de tempo e espaço. No entanto, a saída imediata pareceu a Bauman fortemente ambivalente. A tolerância é egocêntrica, contemplativa e aclama a neutralidade. A linha ambivalente que separa a tolerância forçada da indiferença é frágil.
Em sua versão intencional gera gentileza. Mas, “Ser gentil é apenas uma maneira de manter o perigo a distância; como a antiga ânsia do proselitismo, é resultado do medo” (1999, p. 248). A tolerância intencional é geralmente dissimulada. Busca somente a rápida saída do convívio com o estranho e com o diferente. As existências diversas e plurais sob a égide da tolerância não estão preservadas ou seguras, mas pautam-se e colocam-se diante do medo de uma possível agressão ou humilhação.
A diversidade, por outro lado, não é a garantia da pacificação ou da destituição da ambivalência. Por outro lado, é sucumbida pelos contingenciamentos.’
Não se trata, portanto, de eliminar as ambivalências.
A cultura como práxis crítica
Uma das falas mais absurdas dos críticos brasileiros a Bauman é a de que este sociólogo não julgou suas constatações, não as criticou. Pior é a crítica de que ele foi inerte, passivo e que não propôs soluções para as contradições que notou.
Primeiramente, Bauman não lançou fórmulas ou métodos. Ao que parece, estes críticos brasileiros esperam por fórmulas ou métodos. Se Bauman o fizesse entraria em forte contradição com tudo que discutimos hoje.
Outro ponto que me faz desconfiar de tais falas é a não leitura ou uma leitura malfeita de sua obra. Talvez uma outra justificativa, esta certamente covarde, é a postura de isenção daqueles que anunciam a sua obra e querem se negar a aceitar que estão lendo e discutindo a obra de um sociólogo socialista com longa carreira política no Partido Comunista.
Algumas propostas encaminhadas
Eu poderia citar muitos caminhos propostos por Bauman. Para a miséria e a fome, Bauman propôs em 1998, em Em busca da política, a renda básica universal. Em Cegueira Moral, a prática do amor como cuidado e o contato demorado com o outro. Em Vida em Fragmentos, o contato despretensioso com o diferente nas ruas da cidade. Em Estranhos à nossa porta, o acolhimento por parte dos Estados e das Vizinhanças aos estrangeiros e imigrantes.
As soluções para os dilemas do encontro com o outro devem ser estabelecidas e negociadas no momento do encontro, no envolvimento cultural em sua vertente prática, e não dada. Se dada, sua falência é certa!
Mas, sobre as saídas possíveis apontadas por Bauman, vou me deter ao conteúdo que estamos conversando aqui.
Sobre a cultura contemporânea e as ameaças que ela depreende, Bauman propôs em 1991 que criássemos uma “agenda” de problemas a serem abertamente refletidos e debatidos, quando publicou Modernidade e Ambivalência. Essa agenda não deveria ser construída somente por intérpretes da cultura, mas no contexto da práxis crítica da cultura. Essa proposição foi feita em 1975 quando publicou pela primeira vez Ensaios sobre o conceito de cultura, mas em 1991 acrescentou um componente fundamental, talvez um princípio orientador: a solidariedade.
Solidariedade
A solidariedade é uma forma de engajamento social. É a possibilidade de reconstrução do tecido social em frangalhos. É, diferente da tolerância que é sua versão fraca e covarde, a disponibilidade para lutar pelo outro, não por si próprio. É a vontade de defender o outro em sua diferença, não a defesa da sua própria diferença.
A solidariedade não é, senão, uma aproximação dos distantes. É o ponto de inegociável de encontro entre estranhos. É o lançar sobre o outro a minha responsabilidade, pois lutar pela garantia do outro a sua estranheza é a única maneira de minha estranheza ser preservada em sua liberdade de autodeterminação.
A solidariedade é socialmente orientada e militante. Não busca a verdade. Não tem a certeza. Nasce da solidariedade e a concepção de que é necessário e imperativo o “Pluralismo do poder” contra a “ordem universal e uniforme”.
Para finalizar, aceitando as ambivalências como condição
Por fim, Bauman reivindicou que a ambivalência é uma característica da cultura moderna, aqui não fazendo qualquer separação entre modernidade e pós-modernidade. E a ambivalência que importa é aquela que paradoxalmente se estabelece entre a criação e a regularidade normativa. As culturas modernas, livres dos contingenciamentos e das pressões externas pela ordem, dialogicamente transitam entre a invenção e a preservação; entre as descontinuidades e prosseguimentos, entre a quebra de padrões e as rotinas; entre a mudança e a reprodução; entre o inesperado e o imprevisível (2010, p. 18).
Mas essas ambivalências só podem ser admitidas à cultura se a entendermos como práxis crítica. A cultura é a única faceta da vida humana em que se unem o conhecimento da realidade, o interesse pelo autoaperfeiçoamento e a realização. A cultura recusa-se a consentir com a consciência limitadora. Nega a realidade e reivindica para si um significado mais profundo de justiça, de liberdade e do bem, sejam eles individuais ou coletivos.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o Conceito de Cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e Intérpretes. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
O corpo não é um assunto ou tema muito problematizado pelos críticos de Zygmunt Bauman, talvez por ser secundarizado ou não ter sido tema de esforços repetidos e de destaque. No entanto, Bauman se debruçou sobre ele. Constituiu um conjunto de subtemas interligados ao corpo. Destes se destacam sexo, sexualidade, desejo, identidade, comunidade, saúde e boa forma.
Este texto é o primeiro de três sobre o tema corpo na obra deste sociólogo. Nele conversaremos sobre saúde e boa forma, assuntos aparentemente correlatos, mas que guardam grandes diferenças quando analisados do ponto de vista sociológico.
Todos nós temos um corpo
Este assunto é, para mim, muito importante. Acredito que para a maioria dos leitores e leitoras também. Sempre lutei contra a balança. No entanto, apesar do pavor, às vezes recorria a ela obsessivamente. Em algumas ocasiões, até duas vezes no mesmo dia averiguava meu peso. O mesmo ocorria na minha juventude com exames clínicos. Às vezes mensalmente recorria ao laboratório.
Obviamente, este era um comportamento difícil para mim. Eu realmente estava “acima do peso”. Mas esta obsessão não era resultado somente da minha preocupação com meu próprio peso. Lembro-me das outras pessoas dizerem: “nossa, você engordou”; “O Pedro está acima do peso” e daí por diante. Na minha adolescência eu subia na balança para enxergar o quanto estava “acima do peso”.
Certa vez decidi emagrecer. Foram 28 quilos em 5 meses. Tinha 17 anos. Emagreci tanto e tão rápido que a sensação de estar “fora do peso” ainda persistia. Meus amigos e vizinhos diziam: “nossa, como você emagreceu”; “emagreceu demais”; “Pedro, você exagerou”. Neste contexto, meus exames clínicos não alteraram em nada. Todos os índices estavam dentro da normalidade como sempre estiveram. Assim, baixei a guarda!
Desde então tenho lidado com o “estar fora” das normas. Não possuir o corpo socialmente desenhado, estipulado, matematizado e (por que não!) desejado tem sido fonte de sofrimento e reclusão. Assim, estabelecer pontos de contato social é, para mim, sinônimo de exposição dessa fraqueza. Por que, se todos nós temos um corpo? Não somos, enfim, diversos corpos e corpos diversos? Apesar de afirmativa, a diversidade não tem sido fonte de conforto e alento. Há uma ambivalência latente na diversidade.[1]
Zygmunt Bauman: uma sociologia do corpo?
Neste texto vamos conversar sobre corpo, saúde e boa forma na perspectiva do nosso amigo Zygmunt Bauman. Ele nos deixou mensagens importantes, ainda que, no entanto, pouco estudadas, destacadas e analisadas.
Os comentários e análises de Bauman sobre o tema em sua obra são pontuais, mas precisos. Ele as inseriu em grandes contextos em que temas específicos são interconectados. Assim, foi necessário investigar várias obras, identificá-las e analisá-las. Interessante é que nas repetições Bauman sempre acrescentou novas interpretações e explicações sobre este tema em obras posteriores. Como afirmei em O Mundo Líquido de Bauman: 12 livros para compreendê-lo, este parece ser seu modus operandi intelectual.
Assim, o tema do corpo na sociologia baumaniana é difuso, mas persistente. Deste tema abrem-se diversas outras janelas teóricas e associações temáticas, como corpo e sexo, corpo e identidade, corpo e desejo, corpo e individualidade, entre outros. Deste modo, para organizar tal conteúdo, os dispus em três textos e este é o primeiro deles, com recorte na relação corpo, saúde e boa forma.
O corpo socialmente construído
Nascemos e somos corpos biológicos. Nossos corpos indiscutivelmente possuem determinantes genéticos. Portanto, nossos traços e características principais são determinados pela natureza e não pela cultura. Em outras palavras, “’herdamos’ nossos corpos, inteiramente feitos por genes”[2] e suas características originárias não são derivadas de nossas escolhas ou ações.
No entanto, disse-nos Bauman e May: “nossos corpos são objeto de condicionamento social”[3]. É um autoengano imaginar o contrário. Cada cultura ou sociedade possui um conjunto de códigos que caracterizam um tipo ideal ou tipos ideais de corpos. Estes tipos também não são estanques ou perenes, mas variam ao longo do tempo. Podem mudar sutil e lentamente e às vezes radicalmente. Assim, a depender de onde estamos e com qual grupo interagimos podemos ou não ficar confortáveis com nossos corpos. Ao mesmo tempo, por outro lado, a inadequação pode nos conduzir aos mais variados tipos de humilhação e sofrimento.
Tal condição, portanto, nos conduz a um entendimento de que nossos corpos precisam ser construídos, pois estão sempre inacabados, imperfeitos ou inadequados. As normas sociais que todos notadamente partilhamos impõe aos corpos um deslocamento. É necessário um conjunto de ações e cuidados diários capazes de moldá-lo, adequá-lo ou adaptá-lo às normas. Essa compreensão quase unânime, portanto, tem colocado a construção do corpo como um dever socialmente estabelecido e do qual poucos conseguem escapar. Isso faz dos corpos objetos de estudo sociológicos porque, também, são socialmente construídos[4].
O corpo, o medo e o sofrimento
Freud foi claro quanto aos medos humanos[5]: medo da morte, medo da natureza, e medo de não conseguirmos nos enquadrar às relações sociais e humanas e a suas normas. Medo de não atender a seus requisitos. De não ser aceito. Enfim, medo de não fazer parte.
Este último é a principal fonte de sofrimento atual, especialmente quando tratamos dos corpos. Nossos medos imperam porque queremos engajamento e nos engajar socialmente, mas seus parâmetros, normas e leis, não são construídos por nós mesmos. Eles nos antecedem ou são constituídos por uma poderosa indústria. Pouco podemos contribuir com eles e nossa capacidade de ação não ultrapassa a esfera privada ou as relações mais próximas. Há, assim, uma sensação de desajuste, desencaixe ou um desencontro dos corpos com o tipo ideal normatizado.
Estar adequado às normas era e é pressuposto primário de aceitação. Era e é o bilhete de acesso. Por falar em acesso, por exemplo, posso citar os edifícios inacessíveis a Pessoas com Deficiência (PcD). Historicamente a constituição da arquitetura das cidades era pensada e executada para pessoas sem deficiência e minimamente convergentes com as normas do corpo. Exclusão era a regra para os inadequados às normas. Inclusive, exclusão territorial. Os PcDs do passado eram invisibilizados pelas famílias, pela sociedade e pelas instituições sociais, portanto, não saíam de casa ou eram colocados em sanatórios afastados da cidade.
Embora muito tenha mudado, há ainda processos de exclusão e inacessibilidade para estes e outros corpos. Isso porque o corpo é o instrumento legítimo do que somos (ou do nosso self, como disseram Bauman e May[6]) para conhecimento e reconhecimento social. É o que de nós é visto e percebido. E é a “última linha de defesa de nosso conjunto de trincheiras”[7] contra o mundo exterior e os perigos que apresenta.
Saúde e bem-estar
A busca pela saúde e bem-estar de nossos corpos são pontos importantes. Há uma dupla razão para isso: 1) do ponto de vista do cuidado de si; 2) do estabelecimento de um “projeto” de si. A dupla razão é convergente e para nós a possibilidade do acompanhamento deste processo. Há um conjunto de parâmetros mensuráveis que pode nos dizer como está a saúde dos nossos corpos. Por exemplo, fazer exames clínicos, subir numa balança ou aferir a pressão sanguínea. Para, em tese, garantirmos uma boa saúde é necessário estar dentro dos parâmetros e das faixas estipuladas para estes testes como normais ou adequadas. Estar fora delas, por outro lado, exige atenção.
Assim, o mais interessante é que no mundo líquido (em que tudo muda e que pouco ou nada podemos controlar), um projeto de saúde do corpo “tem suas vantagens”[8]. Parece ser uma das poucas coisas que está à nossa mão e que podemos controlar. Parece!
[…] “como saber se eles [os cuidados com os corpos] são suficientes?”[9], questionaram Bauman e May. Eis uma questão fundamental que não diz respeito aos parâmetros estabelecidos para a boa saúde. Diz, acima de tudo, a “algo externo à relação com nossos corpos – as sociedades”[10], que podem não assumir tais parâmetros como suficientes. Em outras palavras, a depender da sociedade e suas normas para um corpo ideal, ser saudável não será suficiente e imporá às pessoas uma pressão para o ajuste.
Eu imaginava que a atual e grande atenção dada ao corpo era por ser uma das poucas coisas ainda passíveis de controle. Estava errado! A intensiva atenção dada a ele se dá pela incapacidade de controle dos tipos ideais de corpos que definitivamente não podemos controlar.
Ser fitness e a cultura da transgressão
“Ser fitness[11]diz respeito à transgressão às normas, não à adesão a elas”[12]. Ao contrário da noção de saúde e de bem-estar, mediada por parâmetros claros, a boa forma e o corpo fitness (ou apto) não estão ligados a eles. Estão, acima de tudo, relacionados ao tensionamento das capacidades do corpo ao limite e não ao que ele normalmente faz. Em resumo, atendem ao requerimento social de que estar saudável não é suficiente. É preciso parecer e se mostrar saudável.
Ir às academias e propor programas restritivos de alimentação e suplementação são pontos importantes da cultura da transgressão do mundo fitness. Além do mais, lojas específicas de vestimentas, acessórios e adereços para os corpos fitness estão por toda parte. Em outras palavras, há um mercado à serviço deste universo cujos parâmetros não são muito claros.
Não são claros ao ponto de movimentarem um nicho específico de mercado, pois alimentos normalmente consumidos geralmente não atendem às expectativas do corpo fitness. Fazer uma caminhada na vizinhança não trará um abdome trincado, embora seja aprazível para uma boa saúde. Em suma, se alimentar bem e fazer exercícios cotidianos, leves e moderados, condicionam o corpo à saúde, mas não à boa forma.
Atributos que definem os parâmetros da boa forma são os de um corpo “magro, elegante e ágil” e “atlético”[13]. Atributos que, no entanto, “não podem ser medidos”[14]. Já possui baixo percentual de gordura corporal? Sempre será possível reduzir um pouco mais para parecer saudável e forte. Se é possível comparar pessoas saudáveis, não é possível comparar pessoas fitness, mesmo que do mesmo peso, altura ou percentual de gordura. Bíceps poderão possuir dimensões diferentes, assim como a cintura. Também será possível encontrar nessas pessoas índices de saúde fora dos parâmetros de normalidade, mas parecerão saudáveis.
Preocupações com o corpo e a ansiedade
Tanto para um projeto de saúde do corpo quanto para o corpo fitness, há um ponto de destaque a ser feito. Ambos podem provocar ansiedade e outros sentimentos negativos, pois são sensíveis às pressões externas que são cada vez mais exigentes.
A busca pela saúde dos corpos tem se tornado cada vez mais sinônimo de fitness. No entanto, são compreensões diferentes e dominantes em tempos diferentes da história. A saúde dos copos não era só desejável como requisito básico para a empregabilidade na sociedade de produtores. O corpo fitness ou o corpo apto[15], como Bauman preferiu nomear em Modernidade Líquida, é sensível aos desejos e ambições da sociedade de consumidores, cujos parâmetros são rapidamente mutáveis.
Portanto, Entre estar saudável e parecer saudável há uma distância a ser percorrida. Esta distância é normal e paradoxalmente parte dos problemas psíquicos. Melhorar a performance do corpo e deixá-lo sempre atualizável pode, assim, causar sofrimento e ansiedade. Isso porque a saúde na direção da aptidão (fitness) e a aptidão do corpo exigem vigilância, autocontrole e a eliminação de riscos de desvio. Passa-se de uma sociedade saudável para a sociedade que se ocupa em controlar e mensurar os riscos de seus comportamentos, utilizando-se dos recursos anteriores (parâmetros claros e fixos) e atuais (parâmetros imprecisos e voláteis).
O corpo saudável e a ansiedade
A depender da sociedade, grupo ou comunidade que participamos ou somos integrantes, a satisfação com o corpo saudável pode durar pouco. Esta condicionante pode fazer o indivíduo enxergar a adequação aos parâmetros de saúde como um passo de um longo percurso. Isso porque, de modo geral, a sociedade da produção, que exigia que o corpo estivesse saudável para o trabalho pesado em fábricas, já não existe como antes[16].
Assim, há uma ansiedade possível de ser desencadeada, pois é necessário manter a vigilância sobre o próprio corpo, cultivar o que foi adquirido e prosseguir rumo aos novos objetivos de um novo projeto. O que passa a preocupar nestes casos não é somente a prevenção às doenças, que passam a ser mais difusas. É a adequação aos parâmetros imprecisos de estar sempre apto e flexível.
Em Modernidade Líquida, Bauman nos alertou para a existência de corpos saudáveis dispostos a intervenções cirúrgicas e submetidos a dietas milagrosas e restritivas. Parece, portanto, que a busca pela saúde está na direção da busca pela “aptidão”, chancelada pela cultura da transgressão e medição de probabilidades de riscos, e não necessariamente pela simples adequação aos parâmetros da boa saúde. Assim, a orientação de especialistas da saúde e bem estar dos nossos corpos parece insuficiente para alcançar o status de corpo desejável.
O corpo fitness e a ansiedade
No caso da cultura fitness há ao mesmo tempo a culpa e a satisfação. Estes sentimentos produzem ansiedade em função de longos períodos de treino e preparação à espera dos resultados. Longos períodos de alimentação restritiva e exercícios pesados, quando não produzem os resultados esperados geram frustração. Ainda assim, a satisfação quando ocorre o contrário é momentânea, tendo em vista a árdua tarefa, quase impossível, de manter índices corporais tão extremos e pelo novo padrão que surge em seguida.
A ansiedade na busca pela aptidão corporal para lidar qualquer eventualidade se inicia no princípio da busca pela experiência pessoal e subjetiva da conquista da perfeição. Bauman fez uma metáfora interessante sobre o assunto: a busca pela aptidão, pelo corpo fitness, é como garimpar a procura de uma pedra preciosa cuja forma e tipo não pode ser antecipada até ser encontrada[17]. Portanto, não se sabe como será o percurso muito menos o resultado.
O percurso está inteiramente subjugado a variações constantes, a técnicas novas que substituem as já superadas pela ciência e à dieta que varia a cada produto suspenso do cardápio da alimentação saudável e ao novo introduzido. A busca pelo fitness não é linear, mas parece um percurso em ziguezague cujos pontos de mudança são definidos pelas novas descobertas e produtos. Neste percurso não há descanso. A cada micro resultado obtido é necessário traçar novas metas e incorporar os eficientes e atualíssimos exercícios de academia.
Já os resultados, estes sempre serão momentâneos. A cultura fitness é, portanto, aquela do autoexame crítico e severo em frente ao espelho. A constituição do corpo apto nunca estará apta o bastante. O exercício solitário e subjetivo do projeto de si passa a ser autodepreciativo e de “ansiedade contínua”[18].
A inércia e a ansiedade
No caso oposto dos dois acima citados, para os corpos que estão fora dos padrões de saúde e não aparentam uma boa forma, a zombaria e o achincalhamento podem levar à ansiedade. Em alguns casos mais extremos, à exclusão, e em casos comuns, sentimentos de não pertencimento ou inadequação.
Assim, diante das pressões sociais sobre os corpos, fazer alguma coisa para moldá-los está tão sujeito a angústias quanto aqueles que nada fazem. No entanto, são angústias diferentes e com consequências diferentes para as pessoas.
Deste modo, há uma ambivalência latente neste mundo em que as aparências importam. Sofremos porque oscilamos entre o querer acompanhar o tipo ideal e ser deixados em paz. Oscilamos entre a preocupação de si, o desejo de adesão e a negação do ideal de vida saudável. Em resumo, sofremos porque não é possível negociar com o tipo ideal estabelecido. Em outras palavras, estamos fora ou dentro. E lutamos, ao mesmo tempo, pela intimidade das relações e pela solidão do distanciamento.
Para não dizer que não falei de…
Para não dizer que não falei de corpo, sexo, sexualidade, desejo e erotismo, este texto é o primeiro de uma série de textos sobre Bauman e o corpo. Também, para não dizer que não falei de corpo, identidade e comunidade, este texto é o pontapé inicial de um mapeamento temático da obra de Bauman, cujos conteúdos se entrecruzam e cujos temas estão submersos por esta trama.
Fazer este tipo de trabalho é como montar um quebra-cabeças de peças dispersas. É também como interligar pontos e resquícios de um imenso sítio arqueológico. Portanto, este texto ainda passará por acréscimos em função de possíveis novas pelas.
Assim, uma conclusão sobre o que Bauman disse sobre o corpo só virá ao final do terceiro texto. No entanto, já é possível dizer que sua contribuição é importante para a leitura social e sociológica dos corpos.
[11] Bauman compreende a noção de fitness como estado da forma física e capacidade de enfrentar os desafios da vida com dotes como “industriosidade, poder, destreza, coragem, presteza, energia, vigor e vitalidade” em Nascidos em tempos líquidos (2018, p. 34).
Somos sujeitos morais. Faz parte de nossa condição humana. No entanto, a moral pós-moderna ou moral fluida nos faz cegos para o “outro”. Neste texto analisamos as transformações morais a partir da obra Vida em Fragmentos, de Zygmunt Bauman.
Nele Azevedo – Monumento Mínimo (2005)
Vida em Fragmentos
Zygmunt Bauman publicou Life in Fragments (Essays in Postmodern Morality) em 1995. Em 2011 o livro foi traduzido para o português e publicado pela Zahar com o título Vida em fragmentos: sobre a ética pós-moderna. A tradução do título, assim, chama a atenção. O livro aborda a questão moral. Nele, a ética é deixada à distância logo no primeiro ensaio do livro.
Vida em Fragmentos dá sequência às reflexões de Ética Pós-moderna, publicado em 1993. É, assim, uma investigação sobre as transformações morais no ambiente de profunda fragmentação social. Essa fragmentação individualiza as responsabilidades. Privatiza as tentativas de soluções para os dilemas trazidos social e cotidianamente. No entanto, estes problemas estão fora da alçada do indivíduo. Ele não consegue resolvê-los.
Neste livro, Bauman analisou a ausência do “outro”. Assim, como analisar a moral em um ambiente em que o “outro” é visto como ameaça? Em outras palavras, onde a encontraremos se estamos cegos ou nos negamos a enxergar o “outro”?
O outro, o cuidado do outro e os dilemas morais
Todos e todas nós nos vemos diariamente diante de dilemas morais. Pode até ser que não os enxerguemos como dilemas ou sequer lancemos sobre eles algum julgamento conscientemente moral. Mas a realidade é que se estamos diante de outra pessoa, isso nos impele, de imediato, uma condição preexistente para uma avaliação moral.
Ser um sujeito moral não é praticar o bem ou ser bom. Tão pouco praticar o mal faz daquele sujeito um sujeito imoral. O que faz um sujeito moral é a possibilidade do exercício da liberdade de escolha entre o bem e o mal. Até aí, tudo bem. Todos em sã consciência optariam pelo bem em detrimento do mal e fim de história, certo? Errado!
O que faz qualquer situação um dilema moral é o fato de a linha que separa o bem e o mal não passar de um borrão. Em outras palavras, não há um limite claro entre o bem e o mal, e ninguém está livre dessa ambivalência. A situação fica ainda mais difícil quando compreendemos que as noções de bem e mal não são universais e eternas.
A Moral no mundo cristão
Quando Deus disse a Adão “não comerás do fruto da árvore do bem e do mal”, não havia dilema moral. O dilema se impôs somente quando Eva e Adão comeram do fruto e conheceram do bem e do mal. Mas mesmo após a expulsão do paraíso, entre Adão, Eva e seus filhos não havia consciência de que relações incestuosas ou mesmo matar o irmão não os impunha um dilema moral.
Estes dilemas, assim, passaram a ser construídos ao longo do tempo. Essa é a moral da história! A partir da novas ações humanas, novas regras se estabeleciam. Por exemplo, em tese, o pentateuco narra o processo de constituição moral, sendo a sua máxima os 10 mandamentos cravados em mármore pelo dedo de Deus e levado ao povo por Moisés. Tal processo pode ser paralelamente relacionado à infância, momento em que somos categoricamente lançados diante de um mundo pautado pelas ambivalências morais.
Durante a Idade Média, um “erro” diante de um dilema moral era tratado como pecado pela igreja. Impunha-se sobre os sujeitos morais uma solução para dividir o fardo de sua “falha moral”: é possível a remissão do pecado, caso haja confissão e arrependimento. A dor das consequências de suas ações ficava a cargo do indivíduo, mas se seguisse o protocolo estaria curado. Este processo tem por pano de fundo um autoexame de suas ações e seu reconhecimento diante das confissões.
A Moral no mundo sólido
A modernidade, por outro lado, criou um sistema para libertar o sujeito moral de seus dilemas. Haveria um instrumento a ser feito a partir de leis racionalmente construídas, um código moral. O Estado tirou o sujeito do rito de estabelecimento das regras e leis, que migraram para o âmbito da filosofia política. O pecado ganhou outro nome, culpa; e a suas consequências nomeou responsabilidades. Ao criar o código moral com pretensões universais por meio de leis, antecipou seus deveres e crimes, suas consequências e responsabilidades. Ser moral na modernidade nascente era obedecer às regras. Cumprir a cartilha.
No entanto, com a cartilha do código moral sendo estabelecida por uma agência supraindividual, expeliu-se do tecido social a prática do autoexame. As pretensões universais falharam. Qualquer Estado, ao legislar, impunha sobre seu território códigos morais diversos, ampliando a agenda da ambivalência de seus dilemas. Obedecer às leis da Alemanha nazista e denunciar seus vizinhos levou as tensões morais ao extremo. O mesmo ocorreu com quem se via diante da possibilidade de ajuda de uma vítima. O que é ser moral nessas condições? Cumprir a cartilha era, em ambiente alemão, moral. Não cumpri-la era o mais grave dos crimes, com morte já previamente decretada.
Moral no Mundo Líquido
Após a destituição do Estado como detentor da legitimação de estabelecimento de códigos morais (seja por sua desconfiança após o nazifascismo; seja porque foi surdo e mudo às reinvindicações das pessoas; seja por sua progressiva diminuição por políticas neoliberais), agências supranacionais concorrem para ocupar seu cargo. No entanto, aquela que tem vencido a disputa é o mercado.
No ambiente do mercado cada agente dispõe de seus sistemas morais e códigos próprios. Surge nova regra aqui e acolá. Aquelas já estabelecidas dão lugar a outras. Nele, o objetivo de um agente é destruir outro, ou no mínimo, a ocupar seu lugar. Imerso neste ambiente, portanto, cabe novamente ao sujeito seguir sua intuição para adotar sua postura. Nele, circuitos de códigos morais circulam conforme os agentes do mercado. E cabe, no entanto, ao sujeito moral, e unicamente a ele, os desígnios de seu comportamento.
A ambivalência da liberdade
O retorno ao indivíduo da “tirania da escolha”, como disse Hannah Arendt, já não guarda o mesmo enquadramento da Idade Média. Não há um sistema moral, mas vários. Cada qual com seu código de postura. Seguir um automaticamente nos coloca em confronto com outro. Mas desse sistema é fácil mudar, é fácil tentar outra possibilidade.
A liberdade, enfim, está nas mãos do sujeito. O problema, no entanto, é lidar com ela. Em outras palavras, praticá-la de modo responsável com os outros. Afinal, não é isso que faz a moral, moral?
Nos preocupamos se estamos comendo carne ou não, pois é cara a responsabilidade do homem sobre o meio ambiente, mas fechamos o vidro do carro diante de um pedinte faminto. Estou engajado em uma ação, mas outras tantas não consigo contemplar. Se não consigo, advém a dor da responsabilidade sobre minha ação e minha não ação. Afinal, minha não ação também é uma atitude moral.
Nessa liberdade infinita é possível curar a dor da responsabilidade com outra ação diante de um novo dilema moral. O problema é que sem um código moral claro e minimamente duradouro, nossa atitude moral tende a ser, conforme Gillian Rose, misericordiosa ou impiedosa. Diante da variação, multiplicação e rápida circulação de códigos morais pautados pelo mercado, nossa responsabilidade diante da “tirania da escolha” aumenta. O problema é que não nos damos conta disso!
Pedro Henrique Máximo Pereira
Arquiteto e Urbanista. Doutor em Arquitetura e Urbanismo (UnB). Professor e pesquisador.
Auschwitz-Birkenau (ou Auschwitz II) integrou o complexo regional de Auschwitz, o maiorCampo de Concentração Nazista. Foi construído em uma imensa área aberta ao lado da cidade de Oswieçim a partir de 1942. É como uma imensa cidade destinada ao extermínio de judeus e prisioneiros. Assim, Auschwitz-Birkenau: ruína e silêncio (Parte II) é sequência do texto Auschwitz: um cenário do terror e seus silêncios.
Portão de Auschwitz-Birkenau ou Auschwitz II, conhecido como “Portão da Morte”. Foi construído em 1943. Fonte: Commons Wikimedia.
“Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocês nós ganhamos; ninguém restará para dar testemunho, mas, mesmo que alguém escape, o mundo não lhe dará crédito. Talvez haja suspeitas, discussões, investigações de historiadores, mas não haverá certezas, porque destruiremos as provas juntos com vocês. E ainda que fiquem algumas provas e sobreviva alguém, as pessoas dirão que os fatos narrados são tão monstruosos que não merecem confiança: dirão que são exageros da propaganda aliada e acreditarão em nós, que negaremos tudo, e não em vocês. Nós é que ditaremos a história dos Lager (Campos de Concentração)”
(Fala dos nazistas aos prisioneiros nos Campos de Concentração em toda a Europa)
Para introduzir: Auschwitz-Birkenau e seu Genius Loci
Muitos de nós sequer chegou a ouvir detalhes de outros Campos de Concentração nazistas espalhados por toda a Europa (tais como Dachau, Belzec, Sobibor, Chelmno, Majdanek, Treblinka, entre tantos outros). Mas, certamente, a esmagadora maioria de nós conhece um pouco de Auschwitz-Birkenau ou sabemos o que significou e significa. Assim, é oportuno dar sequência ao texto Auschwitz: um cenário do terror e seus silêncios.
A epígrafe, infame e perversa, foi retirada de um dos mais importantes livros de Primo Levi, Os Afogados e os Sobreviventes. Nele, Levi destacou que a ascensão do negacionismo do Holocausto era antecipada pelos nazistas quando, ao zombar dos milhões de prisioneiros nos Campos de Concentração, roubava-lhes o sonho da justiça. Levi aponta que muitos sobreviventes do genocídio programado, planejado e perversamente executado, conviviam com este pesadelo, mesmo depois da condenação internacionalmente assistida dos principais membros da SS.
Neste texto falo um pouco sobre as ruínas de Auschwitz-Birkenau. São ruínas! Marcadas pelo tempo, expressam e denunciam os diversos vazios e silenciamentos evidentes na história do Holocausto. No entanto, estas mesmas ruínas escancaram um termo muito comum entre os arquitetos e urbanistas: Genius Loci. Genius Loci é, em síntese, o Espírito do Lugar. Este Espírito do Lugar era objeto de culto dos romanos, pois, conectados à materialidade do lugar, capturavam sua atmosfera, sua sensibilidade e verdade irrefutável.
As ruínas de Birkenau são, assim, as provas materiais do crime e a substância de seu Genius Loci. Não há como não sentir e, em silêncio, tentar ouvir o que tal materialidade anuncia, verbaliza, grita e continua, 76 anos depois, a insistentemente repetir.
Motivação triste para uma viagem distante
Há duas imagens do complexo de Auschwitz que caracterizam este símbolo e causam arrepios a qualquer um que as veem. O portão de Auschwitz (Auschwitz I) com os escritos “Arbeit macht frei” e o Portão Principal de acesso a Auschwitz-Birkenau (Auschwitz II). De todos as características destes dois complexos, estes eram os elementos que faziam destaque àquela regularidade obsessiva da arquitetura dos barak, ou barracões.
Uma imagem do inferno construído por humanos
Estas duas imagens foram fortemente popularizadas em livros, como “Isto é um homem?” de Primo Levi, “Depois de Auschwitz” de Eva Schloss e “Os fornos de Hitler” de Olga Lengyel; ou filmes, como o clássico “Playing for time” (Amarga Sinfonia de Auschwitz), dirigido por Daniel Mann e com a impecável interpretação de Vanessa Redgrave (1980); ou o vencedor de diversos Oscars, dentre eles o de Melhor Filme, “Schindler´s List”(A Lista de Schindler), de Steven Spielberg, protagonizado por Liam Neeson (1993).
No entanto, essas duas imagens não se consolidaram somente pela fantasmagoria do símbolo nazista que as estabeleceram no contexto do Holocausto. Há um conjunto de imagens de Auschwitz-Birkenau que circunscrevem os significados que se sintetizaram nos portões acima mencionados.
Imagens das provas cabais, documentos históricos e, infelizmente, patrimônio histórico que revela e escancara o que, no auge da sociedade moderna, os seres humanos puderam fazer contra os iguais a si. Foi no ímpeto de conhecer de perto essas imagens, esses documentos e esse patrimônio que decidi ir a Auschwitz-Birkenau.
Motivações literárias
Quando estava cursando meu doutorado na Universidade de Brasília entrei em contato com duas obras que dilaceraram meu espírito e que foram a razão por, na próxima viagem, ir a Auschwitz-Birkenau. Peço alguns segundos do leitor para trazê-las à tona.
A primeira, Modernidade e Holocausto,de Zygmunt Bauman, sacudiu minha compreensão de civilização moderna. Para Bauman, a sombra do Holocausto ainda repousa sobre nossos ombros. E o perigo de se realizar novamente, em outras formas, métodos, motivações e contra outros grupos sociais, ainda é uma realidade. O mais chocante é que, para Bauman, isso não é uma contravenção, transgressão, desvio ou corrupção do espírito civilizatório ou moderno, mas a coroa, a outra face da moeda cuja cara conhecemos tão bem.
A segunda,O que resta de Auschwitz?, de Giorgio Agamben, procura identificar os mecanismos de narratividade do horror inenarrável ao analisar a obra literária de Primo Levi, um sobrevivente de Auschwitz. Assim, Agamben nos apresentou que os limites da narração de Primo Levi, o qual, como testemunha dos crimes, encontrou dificuldades de encontrar referências em um ambiente completamente despido de humanidade. Portanto, para Agamben, Auschwitz representa o fim de qualquer ética de dignidade e adequação a uma norma.
Estes dois contundentes livros me motivaram a compreender o que foi Auschwitz mais a fundo e a conhecê-lo pessoalmente.
Auschwitz: um complexo regional de escravidão e extermínio
Auschwitz-Birkenau não era um simples Campo de Concentração disposto em duas partes. Sua organização era regional e sintetizava a complexidade e hierarquia da organização nazista que se estruturava em toda a Europa.
Em Oswiecim, em função das potencialidades logísticas dada pela presença de ferrovias e proximidade com as principais cidades e capitais do centro-leste europeu (Berlim, Praga, Viena, Varsóvia, Budapeste e Bratislava), além da mais importante jazida de carvão da Europa nas vizinhanças, as ações dos nazistas estavam direcionadas à exploração do trabalho escravo dos prisioneiros pela poderosa indústria alemã.
A organização regional de Auschwitz
No campo principal, Auschwitz I, narrado em Auschwitz: um cenário do terror e seus silêncios , operavam fábricas importantes, como Siemens-Schuckert, DAW (Deutsche AufrüstungsWerke) e Krupp, voltadas à produção de armamentos de guerra. Este campo foi construído em 1940. Após o planejamento e início de implantação da Solução Final em meados de 1941, outros campos de grande relevância foram construídos na região em 1942.
O primeiro a ser mencionado é Monowitz, conhecido como Auschwitz III, que possuía caráter semelhante ao Auschwitz I: campo de trabalho, uma Vila Operária de exploração de trabalho escravo. A poderosa indústria IG Farben operava neste Campo e se articulava a um campo vizinho, Buna (às vezes com menção única de Monowitz-Buna por pesquisadores). Em Auschwitz I a expectativa de vida era de três meses e em Auschwitz III, Monowitz, era de quatro meses.
O segundo, Birkenau, conhecido como Auschwitz II, era um Campo de Extermínio, destino da grande maioria dos deportados dos territórios ocupados pela Alemanha. Ali a expectativa de vida era variada, dependendo da origem, etnia e religião, podendo durar meses ou apenas algumas horas. É sobre ele que falaremos adiante.
Complexo regional de Auschwitz composto por 45 subcampos, dois campos de trabalho(Auschwitz e Auchwitz-Monowitz) e um campo de extermínio (Auschwitz-Birkenau). Fonte: Pedro Henrique Máximo, 2020.
Além destas indústrias mortíferas existiam outros 45 subcampos e campos auxiliares nas redondezas de Oswiecim na Alta Silésia (em 39 localidades, mas o subcampo de Gleiwitz, por exemplo, era subdividido em I, II, III e IV; e Buna, diretamente articulado a Monowitz), a grande maioria deles dentro de um raio de 65 km.
O objetivo desses subcampos era de suporte à produção de Auschwitz e Monowitz. Embora menores, suas dimensões eram variadas e comportavam de poucas dezenas a mais de mil pessoas, dependendo de sua funcionalidade na hierarquia do complexo regional: Arbeitslager (trabalho), Aussenlager (externo) e Nebenlager (de extensão).
Uma noite chuvosa de inverno em Cracóvia
Dia 08 de janeiro de 2020 chegamos a Cracóvia, um dia antes de irmos a Auschwitz-Birkenau. Era final do dia, já escuro, como é frequente no inverno polonês. Fazia frio, caiam poucos flocos de gelo do céu e o trecho da cidade próximo à Kraków Główny, a estação de trem, estava agitada. Havíamos chegado de Varsóvia, uma das mais incríveis cidades que já visitei na vida.
Após o check in no Hotel 32, com fome, decidimos sair à procura de comida no famoso Sukiennice, o belíssimo mercado renascentista do centro da cidade antiga. Estava fechado! Caminhando pela bem iluminada rua Grodska fomos interrompidos em nosso percurso por uma moça. Ela, muito gentil, simpática e persuasiva, nos ofereceu uma promoção, “pague uma cerveja e beba duas em nosso burlesque”, no segundo subsolo do edifício ao lado. Aceitamos! Queríamos conhecer Cracóvia nos poucos dias que ficaríamos por lá.
Uma conversa marcante
No burlesque, uma belíssima moça polonesa se sentou ao meu lado e começamos a conversar e a assistir ao show – eu estava de casaco, com uma sombrinha nas mãos e com fome, mas não havia comidas por lá. Nossa curta estadia no burlesque foi suficiente para compreender um pouco a relação dos poloneses com o campo.
– “Amanhã vou a Auschwitz”. Respondi, perguntado pela moça o que fazia em Cracóvia.
– “Você, jovem, está na cidade culturalmente mais agitada da Polônia e vai a Auschwitz?” Ela, inquieta, me respondeu.
– “Sim! Você não conhece Auschwitz?” Respondi a ela com outra pergunta.
– “Óbvio que sim! Faz parte da história do meu país, portanto, da minha história. Íamos com frequência a Auschwitz e a outros campos quando era adolescente, quando ainda estudava. Faz parte do programa das escolas da Polônia”. Respondeu eufórica e expressiva.
– “Sim, amanhã sairemos às 9:00 em direção a Auschwitz”. Disse eu, surpreso com sua resposta.
– “Auschwitz é um capítulo muito triste da nossa história e lá é um local muito pesado. Uma cicatriz muito aberta. Qual seu interesse por Auschwitz?”, perguntou.
– “Do you know Brazilian’s President?” Respondi com objetividade.
– “Sim, claro que conheço! Agora compreendo sua motivação. Deus, o que aconteceu com o Brasil?” Ela, interessada pela resposta, me perguntou. Mas, esse é assunto para um outro texto.
Continuemos nossa trajetória.
Rumo a Auschwitz-Birkenau
Dando sequência ao texto Auschwitz: um cenário do terror e seus silêncios, entramos na van rumo a Auschwitz-Birkenau (Auschwitz II) por volta das 14:00. O silêncio imperava! Não me recordo de absolutamente nada do percurso até o Campo de Extermínio. Nada! Não há ainda registros fotográficos feitos do percurso em meus arquivos, o que dificulta qualquer recordação.
Depois de algum tempo, não me lembro quanto, paramos em uma conveniência anexa ao campo. “Chegamos a Birkenau!”, pensei – Birkenau foi o nome dado ao Campo em função do nome da bela floresta ao lado, Birkenwald.
O portão de Auschwitz-Birkenau
Ao descer da van olhei para o horizonte e vi, a uns 150 metros, o famigerado portão. Não parei para observar bem onde estávamos e o que havia no nosso derredor. Estava aterrorizado! Iniciamos, de imediato, o percurso até o Campo antes que o sol se pusesse. Parte considerável das instalações estavam fechadas. Havia uma preparação do local para o evento comemorativo de 75 anos de libertação de Auschwitz, no dia 27 próximo.
No percurso até o portão lateral atravessamos os trilhos. Foi um choque! Eram robustos e ainda preservados. As perspectivas geradas em relação ao Portão Principal me fizeram recordar, como num flash, todas as imagens e cenas de filmes que já havia visto sobre o tema. A imagem se transformou em experiência aterradora naquele momento.
Nas laterais dos trilhos, muita lama e terra arenosa. Os pés afundavam a cada passo uns 2 centímetros no solo. Estes trilhos foram construídos em 1944 para conectar a estação Auschwitz, localizada a uns 300 metros dali, à rampa de Auschwitz-Birkenau. O Objetivo era agilizar o processo de escoamento das pessoas às câmaras de gás inauguradas em 1943 que ficavam no extremo oposto do Portão Principal.
Auschwitz-Birkenau: no interior do inferno só há ruínas
Ao atravessar as robustas cercas de aproximadamente 3 metros de altura outrora eletrificadas pela lateral sul do campo, próximo ao Portão Principal, avistamos à direita um horizonte devastado, marcado por pequenas chaminés a se perder de vista. À esquerda, estavam de pé os barracões que resistiram às explosões de janeiro de 1945. Entravávamos pela parte do campo destinada às mulheres, a primeira a ser construída em 1942, inicialmente planejada para ser os estábulos.
Acesso a Auschwitz-Birkenau.
Lagerstrasse de Auschwitz-Birkenau.
Barracões de madeira de Auschwitz-Birkenau.
Caminhamos lentamente pelas Lagerstrasse, as ruas e avenidas do Campo, observando a paisagem e ouvindo a guia. As cercas elétricas não encerravam somente os limites externos do Campo, como em Auschwitz. Existiam áreas e mais áreas internas delimitadas por elas. Em seu interior havia extensas valas no solo de aproximadamente 1,5 metros de profundidade paralelas às cercas. Essas valas eram barreiras no solo para evitar que os prisioneiros e prisioneiras, enfraquecidos pela fome e feridos pelos espancamentos constantes, chegassem às diversas cercas do campo à procura da morte.
A “rampa” de Auschwitz-Birkenau
Chegamos à rampa, local onde os oficiais da SS, Fritz Klein, Josef Mengele e outros praticavam a “Seleção” quando os carregamentos chegavam pelos trilhos. Outrora esse processo era realizado na área externa ao Campo, na estação Auschwitz. Essa “Seleção” determinava quem seria enviado diretamente para as câmaras de gás, como crianças de até 12 anos, idosos, deficientes e qualquer um ao bel prazer dos nazistas, e aqueles que sobreviveriam como escravos por mais alguns meses, devidamente marcados na pele, nos braços e no peito, por números. Em Birkenau, quem não era diretamente destinado à morte tinha o nome trocado por um número cravado sobre o corpo. Em Birkenau, cerca de 8 mil pessoas eram assassinadas por dia.
Rampa de Auschwitz-Birkenau: olhando para o Norte.
Vista do Portão de Auschwitz-Birkenau a partir da rampa.
Um dos vagões reminiscentes de Auschwitz-Birkenau.
Um dos vagões reminiscentes de Auschwitz-Birkenau.
Na rampa, o conato com os trilhos novamente foi intenso. Ali estava um vagão utilizado para o transporte de pessoas. Esses vagões eram utilizados originalmente para transporte de animais: porcos, gado e cavalos. Em tese caberia 8 cavalos neste tipo de vagão, mas os nazistas colocavam de 60 a 100 pessoas em cada um deles para percorrer trajetos de aproximadamente 8 dias, sem água, sem comida e sem luz. Os prisioneiros já chegavam completamente fragilizados ao Campo ou morriam no caminho.
O ponto onde nos encontrávamos, no centro da rampa, era o centro das coordenadas que orientavam sua organização. Ao Sul, o Campo destinado às mulheres. A leste, o Portão Principal. Ao Norte, os Campos masculino, para famílias de ciganos e novos prisioneiros do Leste da Europa. A Oeste, simbolicamente ao pôr do sol, as câmaras de gás.
Monumento Internacional pelas Vítimas do Fascismo
Dalí seguimos na direção das ruínas das antigas chaminés que cuspiam fogo 24 horas por dia e liberavam um cheiro adocicado insistentemente destacado por Olga Lengyel. Ao lado das câmaras de gás, no subsolo, estavam os fornos que queimavam ininterruptamente, chamados no interior do Campo de “Padaria”. Somente os veteranos, normalmente os alemães prisioneiros homicidas e criminosos, ou mesmo os blocova, prisioneiros responsáveis por inspecionar e, duas vezes ao dia, contabilizar os prisioneiros por barracão, sabiam exatamente o que ocorria na “Padaria”. No interior do Campo era proibido dar detalhes sobre a lógica de seu funcionamento e a finalidade de Birkenau.
Chegamos e, mais uma vez, o silêncio imperou. Ao final do percurso estava o Monumento Internacional pelas Vítimas do Fascismo, gigantesco e poderoso. O monumento repousa soberano ao final do percurso de Birkenau entre as duas câmaras de gás principais do Campo, anunciando a vitória sobre o fascismo ao mesmo tempo em que homenageava suas milhões de vítimas. Silêncio! Não me contive! Estendi as mãos e toquei no totem do memorial sob um forte sentimento de vergonha e compaixão.
Monumento Internacional pelas Vítimas do Fascismo
Monumento Internacional pelas Vítimas do Fascismo
Monumento Internacional pelas Vítimas do Fascismo
De frente para o Portão Principal, do lado esquerdo, avistamos Canadá (imensa área destinada à separação dos pertences das vítimas), mas não tivemos acesso a suas ruínas. Do lado direito, ruínas! Ruínas! Ruínas! Eu já sabia dos detalhes do que aconteceu ali, mas eu não tinha ideia da dimensão física das câmaras de gás, dos fornos e das ruínas deixadas tal como ficaram quando os nazistas os explodiram em janeiro de 1945.
As ruínas das câmaras de gás e fornos
Ao redor das ruínas da câmara de gás ouvimos cânticos em iídiche que ecoavam como murmúrios e lamentos. Erguemos os olhos e avistamos um grupo de aproximadamente 15 judeus em lágrimas. No momento em que escrevo sobre esta memória sinto uma dor incomensurável na alma, exatamente como senti naquele momento. Meu amigo e minha amiga leitora. Está muito difícil continuar a escrevê-lo!
Ruínas da câmara de gás e crematório de Auschwitz.
Ruínas da câmara de gás e crematório de Auschwitz.
Ruínas da câmara de gás e crematório de Auschwitz.
Aquelas ruínas evocam a mais profunda dor humana. Ali, naquela câmara de gás que estava à minha frente em ruínas, milhares de pessoas como eu e como você foram brutalmente assassinadas e em minutos tinham seus corpos transformados em cinzas por uma lógica industrial perversa. Ao todo, não se sabe ao certo, morreram em Auschwitz-Birkenau entre 1,1 e 1,5 milhões de pessoas. Não se sabe ao certo porque, como prometido pelos soldados nazistas (ver epígrafe), milhões de provas foram aniquiladas, milhões de registros, documentos pessoais, fotografias de familiares desapareceram. Tudo! Milhões de pessoas que existiam simplesmente deixaram de existir.
No dia da libertação de Auschwitz-Birkenau havia 7 mil pessoas ainda vivas e em condições inumanas. Muitas delas morreram minutos, horas e dias depois que o Exército Vermelho chegou.
No barracão de Auschwitz-Birkenau
Tivemos a oportunidade de entrar num dos barracões. Eu não conseguia falar nada e já não havia saliva na minha boca. Engolia seco. Saímos das ruínas das câmaras de concentração em silêncio na direção de um dos primeiros estábulos ali criados e adaptados para receber os prisioneiros. Mal estou conseguindo escrever nesse momento.
Entramos pela lateral. Silêncio absoluto! Tudo escuro! À esquerda, corredor. À direita, corredor. Se as condições de iluminação natural dos barracões de Auschwitz eram suficientes, em Birkenau eram impossíveis de garantir habitabilidade. Ao final dos extensos corredores uma pequena abertura.
Acesso ao barracão que tivemos acesso.
Condições de iluminação do barracão.
Parede interna do barracão de Auschwitz-Birkenau.
Rosa na janela em Auschwitz-Birkenau.
Koias de um dos barracões de Auschwitz-Birkenau.
Eram dois corredores estreitos e paralelos que configuravam 4 alinhamentos de beliches. Não! Não eram beliches. Eram koias de aproximadamente 3 metros de largura por 80 centímetros de altura. Estes estavam dispostos em sequência e em três níveis: o primeiro, no nível do chão, segundo, 80 centímetros acima, e o terceiro, a 1,6 metros do solo. Eram construídos em taboas de madeira e chegavam a abrigar 15 pessoas em cada koia. 15 pessoas amontoadas em aproximadamente 3 metros de largura. Em cada sequência de vertical de koias não era raro encontrar em Birkenau 60 pessoas. 60! Cada barracão comportava entre 700 e 1.400 pessoas.
No interior do Barraco de Auschwitz-Birkenau.
No interior do Barraco de Auschwitz-Birkenau.
O piso era de chão batido. O único local de acesso era próximo à lareira do barracão. No que entramos era uma lareira para aquecer entre 700 e 1.400 pessoas nos invernos rigorosos da Polônia.
As ruínas sagradas da humanidade
Ao finalizarmos o percurso em Birkenau voltamos em direção à conveniência. Ali tivemos alguns minutos para acalmarmos o espírito e, enfim, pudemos confraternizar nossas experiências pessoais com nossos companheiros de van e conhecê-los melhor.
A experiência em Auschwitz, narrada em Auschwitz: um cenário do terror e seus silêncios foi aterradora, dolorosa e profundamente silenciosa. Entretanto, a experiência em Birkenau foi sufocante. Ali, não havia somente silêncio, mas faltava ar.
Auschwitz permaneceu intacto. Birkenau foi estraçalhado e implodido, restando apenas ruínas. No entanto, as ruínas de Birkenau foram banhadas com o sangue e cobertos com as cinzas de toda a humanidade. O sangue e as cinzas dos que ali descansam justificam uma investida dura e radical contra ímpetos genocidas que ainda nos assolam ou possam vir a assolar, como bem nos alertou Zygmunt Bauman e Modernidade e Holocausto. Inocentes morreram, milhões; mas suas mortes não serão em vão.
Os mais de um milhão de pessoas brutalmente assassinadas no Complexo de Auschwitz, em sua esmagadora maioria, tiveram em Birkenau e nas redondezas o local de descanso para seus corpos, mesmo marcados por intensa tortura e queimados nos fornos de Hitler e de toda a civilização, moderna e racional, que compactuou com o crime.
Janela de um dos barracões de Auschwitz-Birkenau. Fonte: Pedro Henrique Máximo, 2020.
Suas vozes foram silenciadas. Seus corpos foram eliminados. O direito de existir, inclusive nos anais da história, lhes foi furtado. Mas restam as ruínas sagradas de Birkenau.
Certamente o que foi possível ver, sentir e experimentar em Auschwitz-Birkenau, seu Genius Loci, está imbuído de uma tarefa dolorosa, difícil e profundamente complexa, mas nobre, de ensinar os humanos a serem humanos. Estas ruínas tem desempenhado esse papel há décadas e a milhões de pessoas anualmente. Foi isso que fui buscar em Auschwitz-Birkenau. Foi isso que lá encontrei!
Pedro Henrique Máximo
Arquiteto e Urbanista. Doutor em Arquitetura e Urbanismo (UnB). Professor e pesquisador.
Auschwitz, o maior Campo de Concentração Nazista, é um local de silêncio e reflexão. Antes, um cenário de extermínio e terror. Hoje, um patrimônio da humanidade. O complexo de Auschwitz, transformado em museu e memorial, nos permite um encontro com este triste capítulo da história moderna. Assim, este texto refere-se a um relato de experiências de uma viagem a Auschwitz (Parte I).
Auschwitz “Arbeit macht frei” ou em português “O trabalho liberta”. Fonte: Pedro Henrique Máximo, 2020.
Uma viagem a Auschwitz
Um dos dias mais esperados de minha última viagem para a Europa nascia há exatamente um ano. Dia 09 de janeiro de 2020, uma quinta-feira, saímos do pequeno e elegante Hotel 32, situado no centro de Cracóvia, rumo a Oswiecim, rebatizada pelos alemães nazistas no contexto da Segunda Guerra como Auschwitz.
Assim, após uma noite fria de -3ºC, típica do inverno polonês, tomamos um café da manhã reforçado no restaurante do hotel. No itinerário com início às 9:00 não estavam previstas paradas para almoço ou lanches. Uma preparação era necessária!
O dia nasceu nublado por volta das 7:30 a uma temperatura de aproximadamente 1ºC. Na recepção fomos informados que o tempo estava bom, pois não havia nevadas ou temperaturas extremas. O gentil recepcionista de aproximadamente 30 anos de idade nos contou que, quando criança em períodos de inverno, tempestades de neve eram intensas, comuns e chegavam a acumular cristais de gelo a quase um metro de altura nas ruas da cidade e pastagens da região. Tivemos sorte! Na noite anterior havia chovido bastante e geou, mas não chegamos a ver neve na Polônia, embora essa talvez tenha sido a chuva mais gelada que já tocou minha face.
Às 9:00 em ponto a van que faria o trajeto de aproximadamente 70 km já nos aguardava à porta do hotel. Então, nos juntamos aos demais. Havia russos, holandeses, chineses, estadunidenses, italianos e dinamarqueses ali. A viagem de uma hora aconteceu em silêncio, como numa procissão. A origem dos visitantes só conhecemos durante o percurso em Auschwitz-Birkenau ou no retorno a Cracóvia ao final do dia. Até a chegada ao maior campo de concentração nazista não falamos nada e não ouvíamos ninguém.
A chegada em Auschwitz
Nossa incursão em Auschwitz estava programada para ter início às 10:30. Já em Oswiecim por volta das 10:00, uma aura de tristeza pairava sobre a cidade e seus arredores. O céu nublado, a paisagem pantanosa e a umidade da região após uma noite chuvosa reforçavam essa atmosfera.
Ao chegarmos no Campo de Concentração principal nos surpreendemos com um amplo estacionamento arborizado em frente ao primeiro barracão (como eram nomeados os edifícios), o maior de todos eles. Ele utilizado no contexto da Guerra para recepção e registro dos prisioneiros. Neste edifício estão situadas as instalações que utilizamos nos primeiros minutos de preparação inicial. Por exemplo, uso de sanitários, lanchonete e acesso à fila da visita guiada.
À primeira vista o conjunto de Auschwitz é de paisagem inofensiva, semelhante a um pequeno vilarejo de edifícios típicos da Alemanha construídos em alvenaria de tijolos aparentes. Antes da chegada dos nazistas em maio de 1940, no local existiam edifícios de madeira construídos durante a Primeira Guerra pelo Império Austro-Húngaro e que funcionavam como um quartel da artilharia do exército polonês. A região de Oswiecim era de interesse dos nazistas, pois nos arredores da cidade se encontra a maior jazida de carvão da Europa, minério fundamental para a expansão da indústria alemã.
Auschwitz foi planejado para receber 10 mil prisioneiros e deveria funcionar como uma Vila Operária “modelo”.
Arbeit macht frei
Os prisioneiros ali encarcerados encontrariam na inscrição do portão de acesso “Arbeit macht frei” ou em português “O trabalho liberta”. Foi isso que lemos ao atravessá-lo. Lembro-me bem das poças de lama no percurso e de constantemente me questionar: por que este lugar é tão inofensivo e agressivo ao mesmo tempo?
Portão de Auschwitz com a inscrição “Arbeit macht frei” ou em português “O trabalho liberta”. Fonte: Pedro Henrique Máximo, 2020.
O leitor ou leitora deve estar achando essa inquietação no mínimo estranha. Acreditem, foi o que senti e vivi naquela circunstância. O peso da história entrou em conflito com aquelas ruas quase pitorescas. Minha visão alcançava uma vila, mas os meus pés me lembravam onde estava pisando.
Auschwitz, o interior do condomínio de escravidão
Os edifícios situados no interior do cercado de arames eletrificados possuíam 4 pavimentos (subsolo, térreo, primeiro andar e sótão). Estes estavam dispostos em sequência, todos iguais. O que os diferenciavam eram suas numerações: 1, 2, 3…
A distância entre os barracões era a mesma e adequada para uma boa iluminação dos ambientes internos. Portanto, a falta de salubridade, característica da história que esse espaço protagonizou, se dava pela superlotação dos quartos e a condição precária submetida aos prisioneiros.
O barracão 4
Para ver como viviam, entramos num desses barracões. Era o barracão 4, que expunha o processo de extermínio.
No corredor de acesso, fotos dos prisioneiros em todas as paredes. Homens, mulheres, crianças; jovens e idosos. Todos iguais: cabeças raspadas, excessivamente magros e com o mesmo uniforme listrado. Em suma, desumanização das vítimas era uma técnica comum dos nazistas. À minha frente estavam as provas.
No entanto, uma coisa me chamou a atenção. Apesar de suas aparências eram deformadas e padronizadas, seus olhos não se submeteram a este processo. Os olhos dos prisioneiros falam, e falam muito! No rodapé das fotos estavam os nomes, nacionalidades e datas de nascimento e morte. Todos morreram ali naquelas instalações.
No interior deste barracão as portas de acesso aos ambientes estão lacradas. Assim, não é possível acessá-los, somente vê-los por uma abertura envidraçada nas portas entre as paredes repletas de retratos. As cenas são terríveis! Jamais esquecerei os sacos de linho preenchidos com cabelos e transformados em colchões; os beliches, um ao lado do outro, grudados; os sanitários e banheiros superexpostos.
No primeiro pavimento estavam expostas as provas cabais. Fotografias inéditas do processo de “escolha” dos condenados à morte. Uma verdadeira roleta nazista. Filhos separados dos pais. Os idosos e deficientes considerados “improdutivos” sequer chegavam a se instalar.
Eles eram direcionados para as câmaras de gás em Birkenau (falaremos dele em outro momento). Ali inclusive havia uma maquete imensa que reproduzia o fluxo dos prisioneiros às câmaras de gás e crematório. No mesmo pavimento, cinzas humanas colhidas no complexo de Auschwitz. Além disso, latas e mais latas vazias de Zyklon B. Não tenho palavras para descrever o que senti!
Latas de Zyklon B utilizados em Auschwitz.Fonte: Pedro Henrique Máximo, 2020.
O barracão 5
À medida que caminhamos por Auschwitz minhas impressões mudaram. Aquela paisagem inofensiva era de uma agressividade brutal. O silêncio era absoluto depois de tanto ouvir o que os olhos dos prisioneiros das fotografias me disseram!
Na caminhada somente ouvíamos os passos e, de vez em quando, a voz da guia que não escondia sua emoção ao narrar o que ocorria naquelas ruas e edifícios. Olhávamo-nos, e só! Portanto, nenhuma palavra era dita. Engolíamos seco aquela realidade cruel ali presentificada!
Posteriormente, entramos no barracão seguinte. O barracão 5 expunha as provas cabais. Silêncio!
Toneladas de cabelos. Milhões de sapatos; malas e pastas devidamente identificadas por seus donos, a maioria judeus. Joias, pertences pessoais e íntimos como presilhas de cabelo e gaitas. Produtos domésticos como vasilhas, copos, pratos. Inúmeros! Não tive coragem de pegar o celular e a câmara para registro. Era invasivo demais para aqueles objetos tão pessoais.
Posteriormente, saímos e voltamos a caminhar pelas ruas em silêncio. Passamos em frente ao barracão 10, conhecido como um dos lugares mais terríveis do campo. Ali onde o médico Josef Mengele fazia seus experimentos com humanos prisioneiros vivos. Não pudemos acessá-lo! Estava fechado em função dos turistas que desrespeitaram a ordem expressa: Proibido fotografar!
O Barracão 11
Acessamos o barracão 11, o bunker de punições aos rebeldes, local onde foram realizadas as primeiras mortes em massa com Zyklon B nas celas para prisioneiros no subsolo. Só de lembrar do percurso minha alma fica gélida.
Iniciando pelo térreo, vimos mais instalações dos prisioneiros. Dessa vez mais agressivas e completamente desconcertantes. As condições eram inumanas, mas os habitantes transcenderam humanidade mesmo nessas circunstâncias. Ali vimos diversos desenhos nas paredes desses ambientes, verdadeiras obras de arte. Incrível! Além do mais, vimos roupas dos prisioneiros e uma pequena ala para os soldados da SS, com instalações radicalmente diferentes.
Fomos conduzidos, então, ao subsolo. Que experiência terrível! O primeiro teste para transformação das celas em câmaras de gás ocorreu ali com 160 prisioneiros. Nem todos morreram no primeiro lançamento de gás. Os sobreviventes ficaram ali, intoxicados, à beira da morte e agonizando sobre os corpos dos companheiros de cela. Enquanto isso os nazistas observavam do lado de fora das celas por uma espécie de olho mágico.
Em nosso trajeto as celas estavam lacradas. Não pudemos acessá-las a não ser repetindo o mesmo ato dos nazistas de olhar pela fenda na porta. Isso me deu enjoo. Consegui fazê-lo somente uma vez!
A Parede da Morte ou Parede Negra
A saída do subsolo se deu pela lateral, entre os barracões 11 e 10. Ali encontra-se a “Parede Negra” ou “Parede da Morte”, local em que milhares de prisioneiros foram, antes da criação da câmara de gás provisória no subsolo do barracão 11, exterminados a queima roupa. Em frente à parede, silêncio! O silêncio gritava ao ponto de quase causar surdez! Ali todos se posicionaram em meia lua ao redor da parede, numa relutância em se aproximar.
Não me contive!
Caminhei até a parede, movimento que, do grupo de turistas que me encontrava, somente eu tive a ousadia de realizar. O curioso é que não consegui acessá-lo de frente. Caminhei por sua lateral esquerda e toquei suas placas de concreto. Frias! Geladas! Úmidas! Silêncio!
Fora das cercas eletrificadas de Auschwitz
Após essa experiência de pausas e silêncios tivemos um tempo de respiro. Caminhamos por aproximadamente 10 minutos até as instalações da câmara de gás permanentes. Os testes no subsolo do barracão 11 levaram os nazistas a criar um modo de produção industrial de mortes e construíram uma câmara de gás com fornos para incineração os corpos. No caminho até lá passamos em frente à forca em que Rudolf Höss, comandante de Auschwitz por dois anos, foi enforcado em 1947, no local onde ficava o edifício da Gestapo.
A Câmara de Gás e o Crematório
Ao lado avistamos a chaminé que emergia de um talude encoberto por grama. Chegamos à câmara de gás! Silêncio!
Assim, ali permaneci por mais tempo. Por fora, observei a arquitetura do espaço. Os taludes que encobriam as espessas paredes de concreto eram para abafar o som dos gritos de desespero. Não é possível ouvir de fora o que ocorria ali. A câmara de gás ficava fora do perímetro da cerca eletrificada, ao lado do hospital do campo. Impossível para aqueles que estavam dentro do campo saberem o que ocorria do lado de fora.
Acesso principal à câmara de gás e crematório de Auschwitz.Fonte: Pedro Henrique Máximo, 2020.
Por dentro da câmara de gás, uma sala escura e úmida. Mais uma vez não me contive e me aproximei das paredes com marcas de unhas e mofo. Estendi o braço e toquei as paredes. Silêncio! Engoli seco. “Essas paredes rígidas precisariam ser arranhadas inúmeras vezes para ficarem as marcas” – pensei. Silêncio! Engoli seco mais uma vez!
Ali os passos dos turistas ecoavam e eram mais altos que do lado de fora. Poucos conseguiram entrar. Muitos esperaram do lado de fora.
Ao lado da sala de gás estava o acesso ao crematório. Um local também escuro e enegrecido pela fumaça e mofo. Para aqueles que conhecem os fornos de queima de tijolos saberão como é. Não tive condições de me aproximar. Afastado, olhava a cena. Silêncio! Pessoas ao redor choravam e muitas não suportaram permanecer ali. Fixei os olhos e ouvia as pausas, os choros, os passos, o silêncio. A essa altura mal conseguíamos nos olhar! Uma vergonha insuportável repousava entre os que ali estavam. Não sei se uma vergonha por sermos turistas e estarmos ali ou uma vergonha do que somos como humanos. Estes sentimentos se misturavam tal qual estão confusos em minha mente agora, um ano depois de Auschwitz.
Um cenário de cercas eletrificadas
Saímos deste aparente cenário de filme de terror. O dia nublado de fora nos recobrou a memória de que não era um estúdio de gravações. Era Auschwitz! Silêncio!
Caminhamos para fora do campo de extermínio. Circulamos ao redor das robustas cercas de arame. Silêncio! Impossível dizer algo depois dessa experiência! A imagem da vila desapareceu de minha memória! Não a enxergava mais! Silêncio!
Cerca eletrificada de Auschwitz.Fonte: Pedro Henrique Máximo, 2020.
Passamos novamente em frente ao portão com a inscrição “Arbeit macht frei”. Abaixei a cabeça e olhei atentamente para os meus passos.
– “Quantas pessoas já pisaram onde estou pisando agora?”; “Qual o número real de pessoas que são a razão de eu estar aqui já pisaram no mesmo local que eu?”; “Quantas pessoas como eu, um turista envergonhado, já pisaram neste solo?” – pensei.
Memorial de Auschwitz
Ao sairmos nos deparamos com um belíssimo memorial em totens aos sobreviventes naquele amplo espaço arborizado. Uma instalação singela revelou o rosto envelhecido e a história pós-Auschwitz daqueles que resistiram à morte e conseguiram respirar um pouco do ar de liberdade, ainda que as memórias dos tempos de Auschwitz as tenham aprisionado por toda a vida. Emocionante! Silêncio!
Dalí entramos na van, ainda em silêncio. Já eram aproximadamente 14 horas. Próxima parada, Birkenau, a extensão de Auschwitz criada para receber 100.000 prisioneiros. Mas essa é uma história para outro momento. Foi pesado demais relatar este primeiro momento de minha experiência em Auschwitz. Conto com a compreensão dos leitores e leitoras e espero relatá-la em breve!
Este texto é uma versão atualizada e ampliada do texto Os silêncios de Auschwitz, publicado pelo WeColetivo.
Pedro Henrique Máximo
Arquiteto e Urbanista. Doutor em Arquitetura e Urbanismo (UnB). Professor e pesquisador.