A sociedade lobotomizada é um pequeno ensaio sobre os reflexos sociais da pandemia no Brasil, especialmente no que se refere às ações políticas em sua gestão.
Quando o Brasil bateu o recorde de número de mortes alcançando 1.972 decidi escrever este texto. Era 09 de março, dia do aniversário de 3 meses do WeColetivo. A angústia trazida à equipe por este número não permitiu que sequer mencionássemos a conquista. Afinal, estruturar, manter e expandir este projeto em tempos tão duros não tem sido tarefa fácil. Talvez, neste dia, tivemos uma noção clara da complexa lida que nos impusemos ao criar o We como uma multiplataforma de comunicação digital. Estes e outros dados que escancaram a absoluta tragédia brasileira passaram a fazer parte do nosso cotidiano, pois não lidamos com eles como espectadores. Os dados e números sobre tal realidade pulsam diariamente diante dos nossos olhos e ferem nossos espíritos, tal qual um punhal perfuraria nossas carnes.
O tempo e a dor não me permitiram, no entanto, proceder com a escrita naqueles dias. Era necessário, além de um mínimo de sanidade, pesquisa. O insight que tive precisaria ser verificado para não levar aos meus amigos e amigas, próximos e distantes, uma elucubração vazia e descolada da realidade. Hoje, infelizmente, consigo fazer claramente a relação que naquele momento ainda era pura ideação. Este texto é um primeiro esboço e quero compartilhá-lo com vocês.
Lobotomia generalizada
Há alguns meses assisti a série Ratched. Dentre muitos temas ali tratados, o principal, ao menos para mim, foi a Lobotomia. A Lobotomia foi um tipo de intervenção cirúrgica cerebral que tinha como técnica desligar os lobos frontais, direito e esquerdo, de todo o encéfalo. Objetivava curar doenças mentais, especialmente a esquizofrenia, e modificar o comportamento de pacientes. Era compreendida como psicocirurgia e era também chamada de leucotomia.

Lobotomia, para qualquer arquiteto minimamente atualizado, é tema familiar. O arquiteto holandês Rem Koolhaas, em Delirious New York (1978), tratou deste conceito ao ler as torres da cidade, em especial o edifício Athetic Club, no qual notou uma ruptura com um dos dogmas do Movimento Moderno Form follows Function ou Forma segue a função, concebido pelo “pai” dos arranha-céus de Chicago, Louis Sullivan, em seu ensaio de 1896, The tall office building artistically considered. Na arquitetura metropolitana de Nova Iorque, na torre, era possível encontrar uma variação, diversificação e multiplicidade de usos – às vezes incompatíveis entre si – em pavimentos diferentes ou nos próprios pavimentos, que não era possível ser identificado ou compreendido quando olhada por fora.
A lobotomia para a arquitetura foi profícua, diferente para o caso das ciências médicas, mas gerou o mesmo efeito: uma diversidade incomensurável de resultados. Para a arquitetura, a cisão entre a fachada e as funções internas permitiram verdadeiros espetáculos urbanos – em sentido positivo e negativo – como no caso do Museu Guggenheim de Bilbao, o Centro Cultural Georges Pompidou, em Paris, ou a sede da CCTV em Pequim, na China.
Para as cirurgias cerebrais os resultados foram imprevisíveis, danosos e absolutamente variados. Além da morte, muitos pacientes perderam a coordenação motora, tinham suas falas perdidas ou amansadas, tal qual seu comportamento; reflexões lógicas e corriqueiras não eram mais possíveis ou os pacientes se tornavam dóceis demais, fáceis de serem manipulados.
Direcionada inicialmente para casos de esquizofrenia, a Lobotomia se tornou o protocolo também “adequado” para homossexuais, depressivos e pessoas agitadas, explosivas, nervosas ou mesmo para adolescentes rebeldes. Por cerca de 45 anos, tal procedimento era realizado em cerca de 5 minutos, nas salas de cirurgia ou em quartos de hotel ou residências, em diversos lugares do mundo, sem anuência da família ou do próprio paciente. Os resultados, notadamente mais “adequados” às normas sociais de comportamento, foram aceitos como normais pelos familiares ou como efeitos colaterais do tratamento pela classe médica. Os resultados, mais uma vez, admitiam processos de zumbização das pessoas cujos comportamentos eram considerados inadequados.
Práticas sociais da Lobotomia
Talvez o principal motivo que explique o processo de zumbização social seja o divórcio e o medo da separação definitiva entre a poder e a política, conforme nos apontou Zygmunt Bauman em Globalização: consequências humanas. A política como exercício do poder cada vez minorada por dogmas frívolos, seja no corpo social ou de seus representantes, tem produzido diversas anomalias sociais e uma cultura própria: processos de subjetivação alheios à esfera pública e limitadas à individuação. Isso quer dizer que o indivíduo não se constrói e se consolida como um sujeito social, no social e para o social, mas como um indivíduo atomizado por sua individualização. O resultado é uma diversificação infinita de comportamentos absolutamente imprevisíveis, tal qual a expectativa de um pós-cirúrgico lobotômico.
Com a separação entre política e poder, esquarteja-se o corpo social em micropartículas, ou melhor, os neurônios não conseguem captar ou conectar as informações do corpo trazidas ao cérebro. É possível movimentar o braço, mas a voz não ecoa. É possível ouvir, mas o que se ouve não é minimamente compreendido. Às vezes em estado vegetativo, o corpo, deitado eternamente em berço esplêndido, nada ouve, nada vê, nada pensa, nada sente e nada pode tocar. Está eternamente preso ao presente. O passado? O Futuro? Nem as lágrimas que saem de seus olhos é possível aferir se são por suas memórias fragmentadas ou lapsos mnemônicos, ou se, preso ao presente de imobilidade, chora pelo futuro perdido, inatingido, inalcançado, porque o futuro será, tal qual é o agora, imóvel, inerte, insensível.
No entanto, diferentemente do processo cirúrgico da Lobotomia, a lobotomização da sociedade sempre está em curso. É um eterno presente. Paradoxal, não? Não basta 1.972 para mover-lhe o corpo. Está imobilizada pela apatia, pela anestesia diária ou pelo aumento progressivo da dose de morfina. Também não bastou 4.249. Afinal, quanto maior a dor e maior a duração da lobotomia, maior a dose de anestesia ou morfina.
A sociedade lobotomizada não consegue reagir. É possível queimar seus pés, tal qual é feito com a Amazônia, o Pantanal ou o Cerrado, mas as queimaduras não são sentidas. É possível sufocar-lhe com a retirada súbita de oxigênio, tal qual ocorreu em Manaus, mas o máximo que pode ocorrer é mais um dano ao cérebro já fatiado. Por que se importar com a injeção de heroína em suas veias?
Os crimes desviantes em Mariana e Brumadinho nos mostraram que não é necessário se preocupar. Por que não arrancar um de seus olhos, como é arrancado um pai, um filho ou um neto do seio familiar das periferias do Brasil? Afinal, já não faz falta, porque não enxerga. E a avó que faleceu em decorrência da Covid-19? Por que lamentar, se todos vamos morrer um dia, não é? É melhor parar de “mi mi mi”. “Por mais que tentemos, o corpo não está morrendo com a lobotomia.” Eles dizem. “Só está meio, assim, vegetando.”
As consequências do divórcio entre política e poder são claras, mas só recentemente pudemos ter clareza de tamanhos danos. Ao indivíduo, à célula, é dada a responsabilidade por questões que não estão em sua alçada resolver. Ele sofre com as mazelas socialmente construídas – e que caberiam a ela resolver -, mas sobre seus ombros recai seu peso e a aposta de sua solução. No entanto, com a sociedade lobotomizada, as células que configuram seus tecidos são insignificantes. Morrem aos montes todos os dias e no mesmo ritmo nascem novas. São alimentadas graças a ventilação mecânica ou à técnica ECMO, mas estão isoladas e pouco se comunicam com o cérebro. Aguardam vibrantes na expectativa da comunicação, mas morrem antes que sejam ouvidas, vistas ou sequer percebidas. Afinal, o elo está secionado.
A única esperança para a Sociedade Lobotomizada
Sem mais delongas, não há solução para a sociedade lobotomizada sem que esta passe pela esfera pública. É necessário reestabelecer as conexões cerebrais outrora cortadas. Para as ciências médicas ainda não é possível estabelecê-las novamente, somente atenuar suas desastrosas consequências naqueles que ainda sobreviveram a ela. No caso da sociedade lobotomizada, o elo, apesar de cortado, está dado, só está interrompido pelo medo aterrador de uma nova decepção.
A sociedade lobotomizada também é a sociedade da decepção. Lipovetsky (2007, p. 24) já nos deu a deixa: “o que gera decepção não é tanto a falta de conforto pessoal, mas a desagradável sensação de desconforto público e a constatação do conforto alheio”. Onde se constrói esses vínculos? Na esfera pública que se manifesta no espaço público.
Praças, ruas, esquinas, calçadas e, em cidades de maior porte, nos parques. Este é o conjunto de espaços públicos que produzem novos elos capazes de curá-la. A sociedade lobotomizada está atônita, tem medo do encontro, tem pavor dos diferentes, deixou as ruas e praças da cidade para se proteger do outro, do vizinho, do estranho e do dissidente. Constitui-se, no entanto, de uma mixofobia estruturada em circunstâncias vividas individualmente, mas que são generalizadas pela mídia.
Crimes novelizados e espetacularizados no jornal do meio-dia são difíceis de engolir e impossíveis de digerir. Minam a esfera pública e nos sequestram do espaço público. Encastelados por detrás dos muros, negamos a política e renunciamos o exercício do poder. Automaticamente, privatizamos o poder e enjaulamos nossos representantes. Acorrentados aos novos donos do poder e à nossa apatia, eles agem contra o corpo lobotomizado, administrando mais sedativos enquanto privatizam nossos espaços públicos. No futuro, sem eles, não será possível garantir o corpo vivo para que seja reencarnado nele o espírito da política.
Portanto, não basta reverter o quadro do corpo social lobotomizado. É preciso lutar pelo lugar de reconhecimento de sua manutenção: o espaço público. É disso que Bolsonaro e os outros políticos inescrupulosos têm medo: o povo ocupando o espaço público. No espaço público, o cérebro do corpo social lobotomizado se reconstitui. Política e poder se unem novamente e o poder volta a servir à política. Sei que não é tarefa fácil. Pode ser que não ocorra. Mas não será criando mitos e salvadores da pátria que isso ocorrerá. É preciso curar a sociedade lobotomizada.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
LIPOVETSKY, Gilles. A Sociedade da Decepção. Barueri: Manole, 2007.