A cultura na ótica de Zygmunt Bauman foi o tema de um encontro do Grupo de Pesquisa em Geografia Cultural da Universidade Federal de Goiás, ocorrido em 28 de agosto de 2021. Este texto é derivado deste encontro.
O convite feito a mim para compartilhar com vocês minhas pesquisas sobre o sociólogo polonês Zygmunt Bauman foi uma oportunidade ímpar de tentar estabelecer uma síntese ou um conjunto de sínteses. Desde 2019 tenho me debruçado sobre este autor numa pesquisa que desenvolvo na PUC Goiás. Inicialmente, minha intenção era agir sobre seus escritos como uma espécie de catador e um colecionador, na qual eu coletaria e organizaria temas, debates e conceitos que pudessem contribuir com o campo dos Estudos Urbanos. Agora, depois de montar o primeiro quadro de uma coleção, a pesquisa se desdobrou em um movimento mais amplo sobre a relação entre vida, obra e Estudos Urbanos.
Zygmunt Bauman é um dos autores mais conhecidos na contemporaneidade. Todos e todas já ouvimos falar, lemos alguns de seus livros e ensaios ou interagimos com algum meme sobre ele na internet. No entanto, no Brasil, sua grande fama não é proporcional ao quanto é lido. Tampouco o que é dito sobre sua obra revela parte considerável do que produziu. Pelo contrário, gera sombra sobre temas e assuntos sobre os quais ele se debruçou por décadas. Ainda, a faísca acesa pela disseminação indiscriminada de parte de seus conteúdos causa desconfiança em alguns nichos da academia brasileira, assim como causaram as obras de Nietzsche, Foucault ou, para trazer um autor brasileiro e de nosso amplo conhecimento, Milton Santos.
Assim, tenho percebido que estudar um autor considerado pop é como uma faca de dois gumes. Para a academia, sinal de alerta e desconfiança. Para a sociedade e atores do cotidiano com quem tenho dialogado, sinal de interesse e necessidade. Sinceramente, sigo confiante no sinal dado pela segunda e tento conciliar interesses com o sinal dado pela primeira. Afinal, o papel da academia é devolver para a sociedade conhecimento que adquirimos sobre o mundo e sobre ela própria. É estabelecer um diálogo aberto e honesto a fim de ampliar a autoconsciência de ambas, academia e sociedade.
Além do mais, em que lugar estamos, nós, academia, que não admitimos que um conhecimento possa ser entendido por uma ampla maioria das pessoas ou que seus temas possam ser interessantes para além dos circuitos intelectuais? E mais, que temas característicos da vida cotidiana não possam estar sob os holofotes dos interesses da academia? Acredito que em algum momento, vocês, geógrafos e geógrafas culturais tenham passado por isso. Nos ambientes e circuitos disciplinares da arquitetura tal fissura é aguda e muitos tentam construir pontes. Posso me considerar um desses e foi com o interesse em entender estes conflitos que me interessei por sua vida, obra e trajetória profissional.
Bauman em diáspora e diante das contradições da modernidade
Bauman nasceu em Poznan em 1925. Era de família judia que transitava entre as classes trabalhadora e média numa das cidades mais antissemitas da Polônia. Quando jovem, sofreu com o antissemitismo na escola e na vizinhança até dia 02/09/1939 quando fugiu dos nazistas que já bombardeavam sua cidade natal. Bauman tinha 13 anos.
Em sua epopeia, os Bauman fugiram sob ataques aéreos dos nazistas para a União Soviética. Instalaram-se em Molodechno, na Bielorrússia, e após 18 meses, em Shakhunya, na Rússia, após o avanço das tropas nazistas sobre o território soviético em 1941. Aos 17 anos ingressou no curso de Física na Universidade de Gorki e foi obrigado a deixar a cidade por sua nacionalidade, indo para o norte da Rússia, para a pequena cidade de Vakhtan, no meio da densa floresta na região de Ninji.
Quando completou 18 anos foi convocado para o ambiente de guerra. Trabalhou inicialmente como controlador de tráfego em Moscou e posteriormente na formação militar do Exército Polonês em Sumy, na Ucrânia. De lá integraram o front, lutaram em Olyka, na Ucrânia; libertaram, juntamente com o Exército Vermelho, Chelm e Lublin, na Polônia. Ali Bauman se deparou com o Campo de Concentração de Majdanek e suas pilhas de corpos em decomposição e “reciclagem” inacabada. Do outro lado do Vístula, viu Varsóvia ser destruída enquanto aguardava as ordens do Kremlin para o avanço das tropas, ordens essas que não chegaram. Já em 1945, os Exércitos polonês e vermelho avançaram sobre os nazistas, derrubaram-nos na Muralha Pomerana e venceram a batalha em Kolobrzeg. Nesta batalha, Bauman foi alvejado com um tiro na clavícula e foi afastado da Guerra até se recuperar. Por fim, chegou em maio de 1945 a Berlim um dia antes do fim da guerra e lutou contra os nazistas em sua periferia.
Na sequência, Bauman integrou a polêmica KBW, responsável por implantar o novo regime na Polônia. Formou-se em Filosofia na Academia e posteriormente, fez mestrado e doutorado em Sociologia, no Departamento de Filosofia da Universidade de Varsóvia. Sua dissertação de mestrado defendida em 25 de julho de 1954 foi intitulada “Abordagem metodológica e histórica da Escola de Baden e sua influência na historiografia polonesa” e foi orientada por Adam Schaff. Em sua tese de doutorado intitulada “A doutrina política do Partido Trabalhista britânico” investigou os vestígios do socialismo nos discursos e práticas do Partido Trabalhista inglês sob orientação de Julian Hochfeld. A defesa de sua tese ocorreu em 16 de maio de 1956.
Para tal, é necessário fazer um breve passeio no tempo das ideias e apaziguar alguns conflitos que possam vir a partir da minha fala. Primeiramente, a pecha de que Bauman é pós-moderno, acreditava na pós-modernidade ou defendia seus pressupostos não passa de uma má interpretação. Bauman utilizou tal termo de meados da década de 1980 a meados da década de 1990, primeiro, para não entrar em conflito com a compreensão que existia sobre a modernidade e, segundo, por não existir, até o momento, nome suficientemente claro para designar as mudanças ocorridas no pós-holocausto.
Ambivalências da cultura moderna
Uma das teses mais significativas de Bauman refere-se ao destaque ou apontamento da ambivalência. É possível encontrar tal tese em Ensaios sobre o conceito de cultura, Legisladores e intérpretes, Modernidade e Holocausto e Modernidade e Ambivalência. Estes três últimos configuram a primeira trilogia de Bauman e sua interpretação sobre a modernidade e a cultura moderna, tema que conversaremos hoje.
Para Bauman, a ideia ou o conceito de cultura e a cultura como fato social e objetivo não são a mesma coisa. Enquanto o conceito de cultura foi instável e estamental ao longo de toda a história moderna, a cultura é, em síntese, a práxis humana crítica e crítica porque autorreferenciada, autoconsciente e autodeterminada.
O conceito de cultura, muitas vezes distante da prática da cultura, foi instrumento de distinção, modelagem, manipulação e a desculpa de privilegiados para impor certas concepções de ordem sobre o território. Em síntese, como conceito, a cultura foi utilizada para perpetuar as relações sociais de poder e deixar as estratificações sociais mais claras para assim serem geridas e aprimoradas.
Em Legisladores e Intérpretes, Bauman (2010 [1987], p. 91) analisou o início do que nomeou de “cruzada cultural” na França, que eliminou a cultura popular urbana e rural, acusadas de perpetuar costumes “falsos”, em meados do século 17; corruptoras da “razão”, no final deste século; ou, já em meados do século 18, de não se adequarem às normas socialmente consentidas e legisladas. Notemos que este processo foi, nestes dois séculos, se tornando institucionalizado a partir de normas em tese claras. Em Modernidade e Ambivalência, Bauman considerou que a “modernização era também uma cruzada cultural” (1999, p. 124), iniciada ali no século 17.
Embora com justificativas distintas, a repressão à prática de sociabilidades que não aderiam ao nascente modelo de cultura persistia. À tradição deveria ser negada a autoridade. Limite, restrição ou proibição era traço de toda e qualquer cultura, sua súmula universal, e isso Bauman aprendeu com Lévi-Strauss e Freud.
O conceito de cultura
No entanto, a cultura moderna nascia diferente de seu traço essencial. Enquanto as restrições eram tradicionalmente constituídas e lentamente reformuladas, na sociedade moderna elas eram legisladas.
O conceito de cultura surgiu com a necessidade de distinção entre a natureza ou “aquilo que é dado” e a capacidade de autodeterminação e autorreferência humanas. A diferença entre cultura e natureza não só precisaria ser demarcada e destacada. O domínio da primeira sobre a segunda deveria ser estabelecido. Inclusive a repressão à natureza humana e suas paixões animalescas.
Era necessário um “contrato social” que impusesse limites à autodeterminação e “legisladores” que pudessem desenhar um projeto de ordem social. A autodeterminação, a benção da modernidade, passaria a ser também sua maior maldição. A autodeterminação era uma ameaça latente, tendo em vista que não poderia se prever seu destino e evitar suas consequências potencialmente disruptivas.
Sobre isso Bauman disse:
Ordem é o oposto de aleatoriedade, significa estreitamento do leque de possibilidades […]. Construir a ordem significa, em outras palavras, manipular as probabilidades dos eventos.
(2012, p. 19)
“A ideia de cultura foi uma invenção histórica instigada pelo impulso de assimilar, do ponto de vista intelectual, uma experiência inegavelmente histórica” (2012, p. 19). Portanto, foi no século 18 que ficou claro que o tempo não era um dado natural, mas atributo humano e social. Como pretensão, a distância entre o natural e o cultural foi regulamentada e o tempo desvinculado de sua continuidade.
O futuro como tempo da cultura moderna
A rejeição da sujeição da cultura à natureza criou uma cunha temporal, na qual o futuro foi desacoplado do passado marcado pela ignorância dessa consciência. O futuro seria inteiramente fabricado pelo homem e sua história seria escrita pelas consequências de sua autodeterminação. Era necessário “colonizar o futuro” (2010, p. 155). Assim, para Bauman, “como forma de vida, a modernidade torna-se possível assumindo uma tarefa impossível” (1999, p. 17).
Como um reforço às ideias de nosso amigo Bauman, nas artes ficou claro quando mimese foi substituída pela poética e o belo foi soterrado pela noção de estética. Poética significa criação e invenção, enquanto mimese significa cópia. O belo era a representação do ideal e da perfeição da natureza, enquanto estética anunciava a faculdade humana do sentir. Esta substituição ocorreu também neste século.
Assim, um grupo seleto de legisladores, cientes do encontro do homem com sua autoconsciência, estabeleceu limites à liberdade da autodeterminação. Estratificou a cultura, estabeleceu normas e regras, livrou o homem de seus dilemas morais regulamentando-os em códigos de conduta, a fim de evitar o temido teste da autodeterminação: “o que os homens podem fazer, se levam até o limite suas faculdades cognitivas, sua capacidade lógica e sua determinação” (2012, p. 14)?
Este teste, senão evitado, deveria ser adiado até que fossem inventariadas, catalogadas, classificadas e por fim ordenadas todas as possibilidades das capacidades humanas. Bauman insinuou que a modernidade nasceu não da ordem como destino, mas da possibilidade entre a ordem e caos, os irmãos gêmeos modernos. Para ele não era necessária a adoção da ordem como princípio de ação caso não existisse seu oposto. Da ambição pela ordem e pelo poder classificatório da modernidade surgiu a ambivalência, o seu subproduto.
O Estado jardineiro
Assim, a ação planificadora da filosofia legisladora procurou regular as possibilidades da cultura. Afinal, se é possível a autodeterminação como um fato objetivo da natureza humana, por que não direcioná-la para o bem comum da ordem universal? Por que não conduzi-la para livrar os homens fracos da sedução de suas paixões?
Esses questionamentos irônicos sintetizam dois espectros da visão dos modernos sobre a realidade: aqueles que teorizaram sobre a cultura e a civilização pressupunham ser seus porta-vozes e se consideravam agentes de notório saber; e aqueles iletrados, a ampla maioria da sociedade, precisariam ser fortemente contingenciados e direcionados.
Em seus estudos, Bauman notou que num dado contexto cultural, não é possível que todos os membros gozem dos mesmos graus de liberdade de autodeterminação. Tal liberdade, adquirida ou atribuída sem ser construída coletivamente e fortemente negociada, não passa de uma prisão, uma anomalia ou uma ameaça. Suas consequências são, em geral, o conflito, a negação, a assimilação ou a dissimilação. Essa, sem sombra de dúvidas, é a maior ambiguidade da promessa iluminista, do liberalismo e do neoliberalismo. Não é possível, em ambiente social, a liberdade sem que essa seja negociada. Na modernidade, no entanto, a liberdade foi “empregada a serviço de sua própria anulação” (2012, p. 19).
No entanto, a separação entre cultura e natureza, no século 19, parece incorrer numa contradição. A cultura foi naturalizada, quando a filosofia positivista tornou-se a razão do desenvolvimento social e humano. Interessante é que este processo se deu pelo agravamento das contingências trazidas pela administração do Projeto Moderno, pelas ciências positivas e a consequente redução da cultura a uma alienação tecnológica e objetiva. Nas palavras de Bauman, o positivismo “reflete fielmente a realidade do mundo alienado dos seres humanos” e criou um “expediente de transformar a melhor parte do sujeito em objeto de controle autoritário e tornar o resto irrelevante e sem significado” (2012, p. 288). E Bauman nos lembrou que o que destituiu a filosofia positivista de sua entronização não foram as filosofias antipositivistas, mas as revoltas populares contra as realidades sociais em que se encontravam, onde transformou-se “a reflexão, o exame, a comprovação e a vigilância em luxo sem os quais se pode passar” (2012, p. 11).
A cultura como possibilidade da poética e da estética cristalizou-se num conjunto de códigos restritivos amplamente diversificados em cada Estado nacional implantado. Por outro lado, somente uma pequena elite burguesa pôde disfrutar da liberdade de autodeterminação.
A ordem perpetrou ao homem moderno o sonho da pureza, a sua máxima expressão. A pureza estaria livre da ação classificadora, legisladora e planificadora. Portanto, levaria a cultura, paradoxalmente, a uma condição natural. A assimilação cultural era um caminho intermediário adquirido pelo poder classificatório rumo a ela. Mas a classificação também era o caminho da ambivalência. A classificação, ao passo que hierarquizava e nomeava, deixava clara a imprecisão da capacidade dar ordem às coisas. Nós, pesquisadores, lidamos incessantemente com essa herança dos idos da modernidade.
A ambivalência, esse sentimento dúbio, solicitava novas tecnologias de classificação e novos poderes para administrar o que era classificado. “os dois fatores combinaram-se dos tempos modernos uma era de guerra particularmente dolorosa e implacável contra a ambivalência” (1999, p. 11).
No entanto, é chegado o momento do grande teste outrora adiado: o holocausto. Eis provavelmente a tese mais poderosa de Bauman: o holocausto não foi um passo para trás na história, uma pedra no caminho da modernidade ou o surto súbito de um comportamento latente da mentalidade pré-moderna. Também não foi uma relação circunscrita entre nazistas e judeus. Ao contrário, o holocausto deixou claro ou revelou o “escândalo da ambivalência” do espírito moderno.
Como nos alertou Bauman:
o Holocausto nasceu e foi executado na nossa sociedade moderna e racional, em nosso alto estágio de civilização e no auge do desenvolvimento humano, e por essa razão é um problema dessa sociedade, civilização e cultura.
(1998, p. 12)
Ilusões da cultura moderna
As ambivalências encrostadas na modernidade foram as principais causas da consciência de sua ilusão. Como vimos e como Bauman nos alertou, as tentativas de contingenciá-la ou aniquilá-la não surtiram os efeitos esperados. Tampouco todo inventário da cultura moderna já realizado pôde antecipar a possibilidade do evento do Holocausto.
A suspeita de que não somente a tecnologia produziu a destruição da Guerra e o Holocausto colocou em suspeição a própria modernidade. Imediatamente seus pressupostos foram lançados ao tempo passado. A promessa do novo envelheceu-se no conceito de cristalização, amplamente difundido em língua anglo-saxã durante as décadas de 1950 e 1960. O conceito de cristalização foi, senão o próprio fundamento da pós-modernidade, o seu prelúdio.
Mas tal suspeita ficou em silêncio, alertou-nos Bauman. O sonho da universalidade dos princípios e da cultura modernos não poderiam ser maculados por suas ambivalências latentes, embora não assumidas.
A rápida saída foi o anúncio do fim da modernidade, o último suspiro do progresso em seu sentido teleológico. Mirar o futuro mais uma vez para livrar de sua trajetória a autocrítica. Como disse-nos Bauman “o progresso, é uma memória do desespero passado e uma determinação de escapar do desespero presente”.
Tolerância e diversidade
No entanto, a desilusão não eliminou as ambivalências. Tolerância e diversidade, as súmulas pós-modernas, não são menos ambivalentes que as noções e igualdade e liberdade. Pelo contrário, encobrem a possibilidade de que novos eventos similares ao Holocausto surjam em outras localidades, contra outros povos e em escalas diferentes. Em Modernidade e Ambivalência, inclusive, Bauman ironizou, “Pós-modernidade ou vivendo com a ambivalência”, e salientou “a pós-modernidade é uma chance da modernidade”, na qual foi liberada a hybris moderna (1999, p. 271).
A tolerância, forçada ou intencional, é dada por uma contingência anunciada e ainda legislada diante do diverso. Afinal, era necessário um pacto mínimo de partilha de tempo e espaço. No entanto, a saída imediata pareceu a Bauman fortemente ambivalente. A tolerância é egocêntrica, contemplativa e aclama a neutralidade. A linha ambivalente que separa a tolerância forçada da indiferença é frágil.
Em sua versão intencional gera gentileza. Mas, “Ser gentil é apenas uma maneira de manter o perigo a distância; como a antiga ânsia do proselitismo, é resultado do medo” (1999, p. 248). A tolerância intencional é geralmente dissimulada. Busca somente a rápida saída do convívio com o estranho e com o diferente. As existências diversas e plurais sob a égide da tolerância não estão preservadas ou seguras, mas pautam-se e colocam-se diante do medo de uma possível agressão ou humilhação.
A diversidade, por outro lado, não é a garantia da pacificação ou da destituição da ambivalência. Por outro lado, é sucumbida pelos contingenciamentos.’
Não se trata, portanto, de eliminar as ambivalências.
A cultura como práxis crítica
Uma das falas mais absurdas dos críticos brasileiros a Bauman é a de que este sociólogo não julgou suas constatações, não as criticou. Pior é a crítica de que ele foi inerte, passivo e que não propôs soluções para as contradições que notou.
Primeiramente, Bauman não lançou fórmulas ou métodos. Ao que parece, estes críticos brasileiros esperam por fórmulas ou métodos. Se Bauman o fizesse entraria em forte contradição com tudo que discutimos hoje.
Outro ponto que me faz desconfiar de tais falas é a não leitura ou uma leitura malfeita de sua obra. Talvez uma outra justificativa, esta certamente covarde, é a postura de isenção daqueles que anunciam a sua obra e querem se negar a aceitar que estão lendo e discutindo a obra de um sociólogo socialista com longa carreira política no Partido Comunista.
Algumas propostas encaminhadas
Eu poderia citar muitos caminhos propostos por Bauman. Para a miséria e a fome, Bauman propôs em 1998, em Em busca da política, a renda básica universal. Em Cegueira Moral, a prática do amor como cuidado e o contato demorado com o outro. Em Vida em Fragmentos, o contato despretensioso com o diferente nas ruas da cidade. Em Estranhos à nossa porta, o acolhimento por parte dos Estados e das Vizinhanças aos estrangeiros e imigrantes.
As soluções para os dilemas do encontro com o outro devem ser estabelecidas e negociadas no momento do encontro, no envolvimento cultural em sua vertente prática, e não dada. Se dada, sua falência é certa!
Mas, sobre as saídas possíveis apontadas por Bauman, vou me deter ao conteúdo que estamos conversando aqui.
Sobre a cultura contemporânea e as ameaças que ela depreende, Bauman propôs em 1991 que criássemos uma “agenda” de problemas a serem abertamente refletidos e debatidos, quando publicou Modernidade e Ambivalência. Essa agenda não deveria ser construída somente por intérpretes da cultura, mas no contexto da práxis crítica da cultura. Essa proposição foi feita em 1975 quando publicou pela primeira vez Ensaios sobre o conceito de cultura, mas em 1991 acrescentou um componente fundamental, talvez um princípio orientador: a solidariedade.
Solidariedade
A solidariedade é uma forma de engajamento social. É a possibilidade de reconstrução do tecido social em frangalhos. É, diferente da tolerância que é sua versão fraca e covarde, a disponibilidade para lutar pelo outro, não por si próprio. É a vontade de defender o outro em sua diferença, não a defesa da sua própria diferença.
A solidariedade não é, senão, uma aproximação dos distantes. É o ponto de inegociável de encontro entre estranhos. É o lançar sobre o outro a minha responsabilidade, pois lutar pela garantia do outro a sua estranheza é a única maneira de minha estranheza ser preservada em sua liberdade de autodeterminação.
A solidariedade é socialmente orientada e militante. Não busca a verdade. Não tem a certeza. Nasce da solidariedade e a concepção de que é necessário e imperativo o “Pluralismo do poder” contra a “ordem universal e uniforme”.
Para finalizar, aceitando as ambivalências como condição
Por fim, Bauman reivindicou que a ambivalência é uma característica da cultura moderna, aqui não fazendo qualquer separação entre modernidade e pós-modernidade. E a ambivalência que importa é aquela que paradoxalmente se estabelece entre a criação e a regularidade normativa. As culturas modernas, livres dos contingenciamentos e das pressões externas pela ordem, dialogicamente transitam entre a invenção e a preservação; entre as descontinuidades e prosseguimentos, entre a quebra de padrões e as rotinas; entre a mudança e a reprodução; entre o inesperado e o imprevisível (2010, p. 18).
Mas essas ambivalências só podem ser admitidas à cultura se a entendermos como práxis crítica. A cultura é a única faceta da vida humana em que se unem o conhecimento da realidade, o interesse pelo autoaperfeiçoamento e a realização. A cultura recusa-se a consentir com a consciência limitadora. Nega a realidade e reivindica para si um significado mais profundo de justiça, de liberdade e do bem, sejam eles individuais ou coletivos.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o Conceito de Cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e Intérpretes. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.