Somos sujeitos morais. Faz parte de nossa condição humana. No entanto, a moral pós-moderna ou moral fluida nos faz cegos para o “outro”. Neste texto analisamos as transformações morais a partir da obra Vida em Fragmentos, de Zygmunt Bauman.

Vida em Fragmentos
Zygmunt Bauman publicou Life in Fragments (Essays in Postmodern Morality) em 1995. Em 2011 o livro foi traduzido para o português e publicado pela Zahar com o título Vida em fragmentos: sobre a ética pós-moderna. A tradução do título, assim, chama a atenção. O livro aborda a questão moral. Nele, a ética é deixada à distância logo no primeiro ensaio do livro.
Vida em Fragmentos dá sequência às reflexões de Ética Pós-moderna, publicado em 1993. É, assim, uma investigação sobre as transformações morais no ambiente de profunda fragmentação social. Essa fragmentação individualiza as responsabilidades. Privatiza as tentativas de soluções para os dilemas trazidos social e cotidianamente. No entanto, estes problemas estão fora da alçada do indivíduo. Ele não consegue resolvê-los.
Neste livro, Bauman analisou a ausência do “outro”. Assim, como analisar a moral em um ambiente em que o “outro” é visto como ameaça? Em outras palavras, onde a encontraremos se estamos cegos ou nos negamos a enxergar o “outro”?
O outro, o cuidado do outro e os dilemas morais
Todos e todas nós nos vemos diariamente diante de dilemas morais. Pode até ser que não os enxerguemos como dilemas ou sequer lancemos sobre eles algum julgamento conscientemente moral. Mas a realidade é que se estamos diante de outra pessoa, isso nos impele, de imediato, uma condição preexistente para uma avaliação moral.
Ser um sujeito moral não é praticar o bem ou ser bom. Tão pouco praticar o mal faz daquele sujeito um sujeito imoral. O que faz um sujeito moral é a possibilidade do exercício da liberdade de escolha entre o bem e o mal. Até aí, tudo bem. Todos em sã consciência optariam pelo bem em detrimento do mal e fim de história, certo? Errado!
O que faz qualquer situação um dilema moral é o fato de a linha que separa o bem e o mal não passar de um borrão. Em outras palavras, não há um limite claro entre o bem e o mal, e ninguém está livre dessa ambivalência. A situação fica ainda mais difícil quando compreendemos que as noções de bem e mal não são universais e eternas.
A Moral no mundo cristão
Quando Deus disse a Adão “não comerás do fruto da árvore do bem e do mal”, não havia dilema moral. O dilema se impôs somente quando Eva e Adão comeram do fruto e conheceram do bem e do mal. Mas mesmo após a expulsão do paraíso, entre Adão, Eva e seus filhos não havia consciência de que relações incestuosas ou mesmo matar o irmão não os impunha um dilema moral.
Estes dilemas, assim, passaram a ser construídos ao longo do tempo. Essa é a moral da história! A partir da novas ações humanas, novas regras se estabeleciam. Por exemplo, em tese, o pentateuco narra o processo de constituição moral, sendo a sua máxima os 10 mandamentos cravados em mármore pelo dedo de Deus e levado ao povo por Moisés. Tal processo pode ser paralelamente relacionado à infância, momento em que somos categoricamente lançados diante de um mundo pautado pelas ambivalências morais.
Durante a Idade Média, um “erro” diante de um dilema moral era tratado como pecado pela igreja. Impunha-se sobre os sujeitos morais uma solução para dividir o fardo de sua “falha moral”: é possível a remissão do pecado, caso haja confissão e arrependimento. A dor das consequências de suas ações ficava a cargo do indivíduo, mas se seguisse o protocolo estaria curado. Este processo tem por pano de fundo um autoexame de suas ações e seu reconhecimento diante das confissões.
A Moral no mundo sólido
A modernidade, por outro lado, criou um sistema para libertar o sujeito moral de seus dilemas. Haveria um instrumento a ser feito a partir de leis racionalmente construídas, um código moral. O Estado tirou o sujeito do rito de estabelecimento das regras e leis, que migraram para o âmbito da filosofia política. O pecado ganhou outro nome, culpa; e a suas consequências nomeou responsabilidades. Ao criar o código moral com pretensões universais por meio de leis, antecipou seus deveres e crimes, suas consequências e responsabilidades. Ser moral na modernidade nascente era obedecer às regras. Cumprir a cartilha.
No entanto, com a cartilha do código moral sendo estabelecida por uma agência supraindividual, expeliu-se do tecido social a prática do autoexame. As pretensões universais falharam. Qualquer Estado, ao legislar, impunha sobre seu território códigos morais diversos, ampliando a agenda da ambivalência de seus dilemas. Obedecer às leis da Alemanha nazista e denunciar seus vizinhos levou as tensões morais ao extremo. O mesmo ocorreu com quem se via diante da possibilidade de ajuda de uma vítima. O que é ser moral nessas condições? Cumprir a cartilha era, em ambiente alemão, moral. Não cumpri-la era o mais grave dos crimes, com morte já previamente decretada.
Moral no Mundo Líquido
Após a destituição do Estado como detentor da legitimação de estabelecimento de códigos morais (seja por sua desconfiança após o nazifascismo; seja porque foi surdo e mudo às reinvindicações das pessoas; seja por sua progressiva diminuição por políticas neoliberais), agências supranacionais concorrem para ocupar seu cargo. No entanto, aquela que tem vencido a disputa é o mercado.
No ambiente do mercado cada agente dispõe de seus sistemas morais e códigos próprios. Surge nova regra aqui e acolá. Aquelas já estabelecidas dão lugar a outras. Nele, o objetivo de um agente é destruir outro, ou no mínimo, a ocupar seu lugar. Imerso neste ambiente, portanto, cabe novamente ao sujeito seguir sua intuição para adotar sua postura. Nele, circuitos de códigos morais circulam conforme os agentes do mercado. E cabe, no entanto, ao sujeito moral, e unicamente a ele, os desígnios de seu comportamento.
A ambivalência da liberdade
O retorno ao indivíduo da “tirania da escolha”, como disse Hannah Arendt, já não guarda o mesmo enquadramento da Idade Média. Não há um sistema moral, mas vários. Cada qual com seu código de postura. Seguir um automaticamente nos coloca em confronto com outro. Mas desse sistema é fácil mudar, é fácil tentar outra possibilidade.
A liberdade, enfim, está nas mãos do sujeito. O problema, no entanto, é lidar com ela. Em outras palavras, praticá-la de modo responsável com os outros. Afinal, não é isso que faz a moral, moral?
Nos preocupamos se estamos comendo carne ou não, pois é cara a responsabilidade do homem sobre o meio ambiente, mas fechamos o vidro do carro diante de um pedinte faminto. Estou engajado em uma ação, mas outras tantas não consigo contemplar. Se não consigo, advém a dor da responsabilidade sobre minha ação e minha não ação. Afinal, minha não ação também é uma atitude moral.
Nessa liberdade infinita é possível curar a dor da responsabilidade com outra ação diante de um novo dilema moral. O problema é que sem um código moral claro e minimamente duradouro, nossa atitude moral tende a ser, conforme Gillian Rose, misericordiosa ou impiedosa. Diante da variação, multiplicação e rápida circulação de códigos morais pautados pelo mercado, nossa responsabilidade diante da “tirania da escolha” aumenta. O problema é que não nos damos conta disso!