O sociólogo Zygmunt Bauman, falecido em 2017, é aclamado globalmente por sua obra Modernidade Líquida. Esta obra faz parte de um legado de mais de 80 livros, além de compor uma trilogia escrita no final da década de 1990. No entanto, Modernidade Líquida não é o maior monumento de Zygmunt Bauman.
Por falar em Modernidade Líquida
Não há dúvida que Modernidade Líquida é leitura indispensável. É obrigatória para aqueles que querem compreender nosso tempo e condição atual. Nela Bauman traduziu e nos deu um conjunto de explicações dos porquês de nossa constante sensação de insegurança, medo e instabilidade. Além do mais, é acessível, de leitura relativamente simples e ao mesmo tempo densa.
Nesta obra, a originalidade de Bauman está na potência do termo líquido. Uma metáfora que traduz de modo preciso a condição de mudança permanente de nossos cenários de vida. Fluidez e leveza são suas características. Além do mais, o conteúdo que ele traduziu a partir desta metáfora é de igual valor.
A ideia central do livro é que tudo é derretido ao mesmo tempo, em intensidades e velocidades diferentes. Em outras palavras, este “tudo” se refere à vida humana que passa por mudanças importantes em curto tempo. O tempo todo!
Este é um ponto que merece destaque! Em Modernidade Líquida Bauman analisou as causas. Deu ênfase a elas. Identificou processos de derretimento e pontos de maior fluidez. Bauman, por outro lado, não era ingênuo. Não generalizou. Sabia bem que ainda há sólidos resistentes. Por isso destacou que a modernidade “foi um processo de liquefação desde o começo”. No entanto, nenhum sólido está livre da alta pressão ou aumento de temperatura.
Modernidade e Holocausto à sombra de Modernidade Líquida
Apesar de sua relevância, Modernidade Líquida não é o maior monumento de Zygmunt Bauman. Seu livro de 1989, Modernidade e Holocausto é, dentre todos os por ele publicados e aqueles de que temos acesso, o que nos faz olhar no espelho de frente. Ainda que a grande maioria de suas obras nos tenha provocado esse auto encontro, esta obra merece atenção.
Por que? Quais as razões dessa alegação?
Modernidade e Holocausto fechou um longo período de 44 anos de silêncio de Bauman sobre o holocausto. Assim, o maior genocídio já cometido em nossa história moderna foi analisado e interpretado.
Bauman não o vivenciou como a maioria dos judeus europeus. Quando as tropas de Hitler invadiram a Polônia em 1939, a família de Bauman fugiu para a União Soviética. Depois, quando adulto, lutou contra as tropas nazistas juntamente com o Exército Vermelho até a, enfim, tomada de Berlim. Escrevi com mais detalhes sobre este assunto em Zygmunt Bauman: a vida de um jovem polonês nos anos de Guerra.
No entanto, em julho de 1944, Bauman se deparou com uma cena terrível em Lublin, quando lá chegaram as tropas dos Exércitos soviético e polonês. Lá encontraram o Campo de Concentração de Majdanek, recém liberto (22 de julho). “Os cadáveres jaziam por ali aos montes, sua reciclagem iniciada, mas ainda inacabada” escreveu Bauman a seu amigo Keith Tester.
Esta é uma informação preciosa publicada por Izabela Wagner em Bauman: uma biografia (2020). Conforme a autora, a partir desta evidência, Bauman conheceu de perto o terror nazista. Certamente, ter visto “os cadáveres […] aos montes” o fez conceber a tese em questão.
Diálogos com Janina Bauman, sua esposa
Janina Lewinson Bauman, esposa de Bauman por 62 anos, escreveu Inverno na Manhã: uma jovem no Gueto de Varsóvia entre 1983 e 1986. O livro o impactou profundamente.
Até sua publicação, pouco se sabia sobre as experiências de Janina no Gueto e fora dele nos anos de Guerra. Janina o escreveu a partir de seu diário que não foi destruído com a queda de Varsóvia. Assim, é um relato de suas memórias de adolescência que, após a guerra, preferiu esquecer. Janina deixou de lado por 40 anos o terror que havia vivido no Gueto. Ficaram guardadas até a morte de sua mãe, quando as recuperou.
Após a publicação de Inverno na Manhã, Bauman se dedicou a escrever o que chamou de “uma Sociologia do Holocausto”. Talvez o que mais o tenha impactado foi o tom livre de amarguras e ódio que Janina expôs no livro. Também o modo como ela descreveu “a mais dura das lutas” que “é continuar humano em condições inumanas”. Portanto, o propósito de Zygmunt foi investigar, de modo obsessivo, os motivadores do holocausto.
A ideia central de Modernidade e Holocausto
A conclusão de Modernidade e Holocausto é o que o faz ser seu maior monumento. Ela talvez seja aquela de maior representatividade e o maior legado do autor.
Em síntese, para Bauman o holocausto não foi o produto da irracionalidade humana. Não foi um passo para trás na promissora história moderna ou uma grande pedra no caminho do progresso. Esta compreensão, conforme Bauman, é ao mesmo tempo enganosa e perigosa. Isso porque, em suas palavras:
“O holocausto foi o encontro único entre as velhas tensões que a modernidade sempre ignorou, desdenhou ou fracassou em resolver, e os poderosos instrumentos da ação racional e eficaz aos quais a evolução moderna deu origem”.
(BAUMAN, 1989, p. 20)
Conforme Bauman, o holocausto foi produto da razão humana e o resultado do teste mais significativo ao qual a modernidade a impôs. Esta compreensão, muito diferente do que expunha o status quo, possibilitou a Bauman chegar a uma conclusão ainda mais significativa.
Para ele, a sombra dos motivadores e causas do holocausto ainda repousam sobre nossos ombros. Por isso é imperativo que, a partir dessa consciência, possamos criar mecanismos de proteção para evitar que ele se repita. Como? De outra maneira, em outro formato ou com outros povos, raças e etnias.
Uma conclusão preliminar
Modernidade Líquida é um monumento literário produzido por Zygmunt Bauman. Sua leitura é indispensável. Sua mensagem é potente. E, por fim, sua contribuição é inestimável.
Entretanto, Modernidade Líquida não é o maior monumento de Bauman. É difícil, inclusive, julgar sua obra comparando duas obras tão distintas. Mas este exercício foi necessário.
Modernidade e Holocausto nos deixou um alerta. Uma mensagem forte sobre os perigos que nos perturbam e que, no entanto, negligenciamos.